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Meu ódio será tua bonança

No começo parecia que ia ser um sonho. Romy Schneider esfregava suas pernas em meu pescoço e Anita Ekberg me mostrava o que que a sueca tem. Ekberg passava então a correr como louca montada em uma manada de alces vindos sabe-se lá de onde enquanto Schneider, com uma tesoura, retalhava meu corpo.

Ao fundo, no topo de uma montanha, ele fumava seu cachimbo. Não podia ver seu rosto, mas a silhueta me era inconfundível. Tudo era culpa dele e sua maldição perversa que recaía sobre mim: a maldição do índio.

Éramos criança e o índio já era um velho muito velho. Como queimar índio ainda não tinha entrado na moda, nos divertíamos jogando meras pedras no velho. Um dia acertei-lhe uma na cabeça que o deixou sangrando e irritado. Veio andando até mim com seu olhar escondido pelo cabelo e passo firme. As outras crianças saíam correndo gritando enquanto eu ficava parado, mais por estar assustado demais para correr do que por coragem. Foi nesse momento que sua maldição se lançou sobre mim, ele disse:

--- Garoto, você tá fudido. Você vai crescer e virar escritor, e em teus sonhos virá teu tormento. Quando começares a não dormir mais, perder o poder de articular as idéias e confundir tequila com mijo, das duas uma: ou estarás virando viado ou ficando louco.

Aquela foi a última vez que vi o índio com vida. No dia seguinte as crianças continuavam brincando na rua, mas o índio não passou mais por ali. Rumores circularam. Uns diziam que um caminhão o teria atropelado, outros que um delegado nada gentil que rondava nas vizinhanças o teria matado, ou ainda que ele teria sido levado por um grande objeto alongado e prateado que descera do céu e depois sumira. O fato é que seu corpo nunca foi encontrado e os índios diziam que ele não tinha morrido porque os do povo deles não morriam. Diziam que o velho tinha virado cobra e voltado pro meio do mato, onde ele pertencia.

Mas ainda assim a maldição persistia. E o cumprimento dela começou a se realizar pelo terceiro item. Chegava eu na casa de alguns sodales já completamente embriagados. Eu sempre evitara a tequila, com medo da profecia do velho. Mas aquele dia estavam todos bêbados. Bêbados e alegres. Muito bêbados e muito alegres. Já faziam dez anos que o índio sumira e desde então aquele fora meu primeiro momento de relaxamento, o único descuido ao longo de uma década.

--- Que gosto estranho tem esta tequila? Vocês botaram sal aqui dentro?

Todos apenas riram e demoraram quase meia hora pra me confirmar que aquela era a urina de Arnaldo. Era o dono da casa, um cara simpático, grande amigo, mas eu realmente não queria ter tomado a urina dele. Ele tinha guardado porque ele e a namorada curtiam algo que chamavam "ducha dourada", mas ele nunca conseguia porque estava sempre com tesão demais. Não quis mais detalhes. Estavam todos muito bêbados e muito alegres. Eu não estava mais alegre. Nem bêbado.

Depois, há cerca de cinco anos, começaram as insônias. Freqüentes, constantes e irritantes. E quando eu pregava o olho vinham os pesadelos. E nos pesadelos, sempre ao fundo, lá estava o índio. Como um figurante e criador ao mesmo tempo. A profecia se realizava, e como eu não estava virando viado, só podia concluir que estava ficando louco.

Romy já tinha, à essa altura acabado de retalhar meu corpo, enquanto Ekberg se recolhia em prantos no colo juvenil de Asia Argento. O sol se cobria de sangue enquanto meus olhos rolavam pela terra, cobrindo-se de sujeira. Ao longe o índio devia sorrir. Tudo se apagava pra mim agora enquanto eu imaginava um último sorriso de triunfo do índio velho, que se espreguiçava e dava uma pitada longa e demorada em seu cachimbo. Tudo muito prazeroso.


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