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Diário de um homem insano

É isso.

O ultimato final soou das paredes até meus ouvidos, que sangravam. O desespero invadiu-me por completo e o teto, que me sufocava ameaçador, avançava agora em minha direção.

Corri desesperado para aquilo que poderia ser minha última fuga, minha salvação final, a Qabala Giaqiana. Tentei acioná-la, mas, pela primeira vez na história humana, falhou a Qabala. Ficou ali, simplesmente inerte, vazia, oca, a olhar-me com um misto de medo e desprezo. Calou-se a qabala por não poder suportar o peso das revelações que estariam por vir.

Num ato bárbaro, de mestre tirânico, pus-me contra a qabala, tentando fazê-la funcionar à ferro e força. Nem a Qabala poderia suportar ou exprimir o futuro terrível. Pôs-se a girar, girar, girar enlouquecida, destruindo tudo que se via ao redor, destruindo suas próprias partes, suas peças móveis, tudo, até que seu corpo físico estivesse por fim totalmente destruído.

Senti o peso do que tinha feito. A Sagrada Qabala estava destruída e se voltara contra mim. Somente Aleph, o Qabalista, poderia construir-lhe um novo corpo físico agora. Meu toque fora amaldiçoado pela Qabala.

Mas isso não era nada, era só o início. O primeiro dia de uma série que está por vir, onde o caos, o sofrimento e insanidade tornam-se cada vez mais densos. Um mero Anacreôntico, o primeiro dos doze dias a decorrerem, e muita coisas hão ainda a serem feita. Há o bar do jack, e todas as coisas que ainda virão.

17:51

2

Priápico, 17/4/99

21:28

Aqui estou novamente. Como prometera.

A insanidade continua a avançar. Junto com o frio que gela os ossos, junto ao vento e a chuva estávamos ontem no bar do Wilbur. Bebemos com calma, sentindo aquela ansiedade e paz eterna que antecedem os momentos de grande turbulência.

Sabíamos que o alívio teria fim em breve. Conversamos amenidades, tentando esquecer a qabala e toda gama de acontecimentos sinistros que antecediam nossa presença ali, naquele bar, naquele frio. Éramos três pessoas sozinhas no frio. Tudo que nos unia era um fio de voz que escoava de nossas gargantas e a bebida gelada que descia em nosso corpo, esquentando a mente.

Noite fria. Sillêncio. O mundo sente a tristeza de todos os corpos de crianças mortas na guerra. O mundo se cala ante o vento, que prenuncia aqueles que irão morrer de frio neste inverno. Tudo que nos resta é partir para nossos lares, nossas camas, tentar achar um cobertor e dormir. Tentar esquecer tudo.

Acordamos de manhã. Ressaca. Sol frio. As árvores pela janela nem se movem, não há brisas, só frio. O mundo parece um retrato, um desenho inerte, talvez nem seja mais real mesmo, não depois de tudo que vem acontecendo. Não depois que a Qabala se destruiu no momento mais crucial da qual dependíamos. A conexão estava quebrada. A porta para a compreensão estava fechada. Fomos agora deixados à nossa própria sorte.

Enquanto isso, um homem insano escreve, no escuro, na tela branca do computador. Escreve seu diário.

A guerra explodia nos Balcãs. Guerrilha na América Latina. Confusão, caos, morte e desespero espalhados no mundo inteiro. No mundo inteiro, menos aqui. Aqui tudo o que havia era o frio, o frio que castigava e punia. O frio que beija a pele do recém-nascido, trazendo más notícias. O frio que aquieta e assusta o animal humano. O frio que mata crianças e une amantes. O frio que seca as lágrimas na chuva, antes de congelar.

O frio

21:43

3

Qabálico, 18/4/99

18:07

A dor e fraqueza me invadem agora, resquícios do gosto amargo deixado na boca. Gosto amargo do fracasso. Gosto amargo da impotência. Gosto amargo do ódio destilado em gentilezas e carícias. Gosto amargo da boca ausente da amante distante. Gosto amargo do alívio inalcançável.

Passo a noite a seguir-lhe cercar-lhe. O mundo gira, mudam as estações. Gira a roda da fortuna mudando o destino de todos os desgraçados humanos, que tentam inutilmente agarrarem-se uns aos outros na tentativa infrutífera de tornarem-se felizes.

Casais brigam e choram, casais se unem. Tudo igual. Tudo o mesmo. Na noite fria e etílica da cidade, a única certeza é que mais cedo menos cedo a dor ataca a todos, indistinta e indiferentemente.

A tristeza entra em cena assolando tudo e trazendo o sopro da loucura. Bate na face o bafo gélido, pestilento, que toca na essência do homem trazendo-lhe os pensamentos noturnos e sombrios que por tanto tempo tentou evitar.

Encostado num muro, no frio, fumando um cigarro barato, cujo gosto embrulha o estômago. Observo, espreito, aguardo minha vítima, que cedo ou tarde passará por aqui. Aguardo minha contraparte no crime enquanto checo o fio do aço gelado, a faca que trago comigo nessa hora escura da noite. Minha contraparte, ela a vítima, eu o assassino. Casais se unem, casais se partem. Eu, a faca, um lar feliz.

O frio sopra mais gélido em meu rosto insano. O cigarro enfim acaba. Eu aguardo.

18:20

4

Metático 19/4/99

22:44

Letargia. Sonolência e estupor. Agora, um dia depois tudo parece confuso e perdido, enevoado. Tudo parece um misto de raiva e naturalidade, um ambiente estranho onde a culpa não ousa arriscar seus pés. Um sonho, isto é que é. Como toda a demais existência do homem, não passou de um sonho tudo o que vem ocorrendo nos últimos quatro dias.

Esperei no frio, bem lembro, já bêbado e sem cigarros, a tremer, encolhido num canto, aguardando. Chegou a vítima. Trocamos palavras, palavras que só não detalho agora porque tudo parece por demais embaçado e confuso para que possa ter qualquer sentido. Senti meu coração vibrar com a chance, a oportunidade tão perfeita e planejada que ali estava. Mesmo assim, por fora, diria quem me visse ser o mais calmo poço de tranqüilidade. Suava frio, mesmo assim meus olhos mantinham-se fincados firmes e gentis na face de meu interlocutor.

Um gosto invadiu-me a boca. Um gosto de adrenalina e expectativa. Um grito primal do ser inumano que em todos nos existe, incentivando-me, incitando-me, alertando-me. Era agora ou nunca.

Desisti. Não sei se por covardia ou pena, daquele sorriso que me olhava cabisbaixo e humilde. Daquele rosto que reconhecia minha superioridade, mesmo que isso fosse um segredo a ser guardado somente entre nós. Eu tinha a faca. E tinha também a encomenda que somente eu poderia fornecer à vítima, transformando-a ao mesmo tempo em vítima e dependente. Nêmesis e filho. Lança e esposa.

Segurei a lâmina entre meus dedos, para que o frio do aço devolvesse-me o ânimo da ação. Segurei o metal cortante, crispando meus dedos ao redor até que começassem a sangrar e despertassem minha fúria, ou dissipassem meu ódio. Nenhum dos dois ocorreu e meus dedos começaram a sangrar. Não. Não poderia matar um inocente. Não poderia matar um inocente que me olhasse assim, com tão bondosos olhos. Deveria sabotar-lhe uma ponte pelo caminho ou arranjar outro meio para que o peso de sua morte recaísse apenas de forma indireta para mim, deixando como verdadeiro algoz a força das águas geladas, ou outro elemento qualquer da natureza.

Despedimo-nos. Minha vítima virou-se e pôs-se a partir. Era isso. Era agora. Não mais recaíam aqueles olhos calmos sobre mim, como que a testemunhar o que eu iria fazer, servindo de testemunha a julgar-me pelo crime a ser cometido.

Ergui ao alto a faca, assim, sem culpas, sem barulhos, sem medos, enterrando-a fundo nas costelas de meu inimigo, que limitou-se a soltar um doloroso e longo gemido, lembrando o sofrimento mais profundo e soberbo que pode atravessar o coração de alguém pego de surpresa pela morte numa esquina.

Puxei a faca e tornei a cravá-la, fincando ainda mais fundo, tornando a atravessar com a lâmina o coração. Virou-se em minha direção, com o rosto assustado e em pânico, tentando lutar. Era inútil. A sangue quente já fluía muito rápido, sujando-me, e na noite fria e silenciosa consegui dominar minha vítima, já enfraquecida, sem muita demora, evitando que o som da luta chamasse atenção. Nem por um segundo sequer conseguiu esboçar som algum que se assemelhasse a um grito. Talvez a surpresa e rapidez da ação tenha assegurado o pânico total e completa incapacidade de uma reação ordenada da vítima. Por fim jazia morta aos meus pés, e a sensação que eu sentia não era de medo, mas sim de um certo alívio e confusão.

Olho o relógio, anunciando já quase a metade da noite fria. Uma névoa densa e tumultuada de confusão encobre agora meu véu de pensamentos. Eu sei que devo aguardar, mas o quê? Que me descubram? Que me peguem? Que me denunciem? Não. Nada disso vai ocorrer, estou certo, pois o ato de ontem não foi outro senão a mais bela e precisa interrupção de uma vida. Sem falhas. Sem testemunhas. Sem suspeitas.

Letargia. Confusão. Dói-me a cabeça agora e, tudo o que sei, é que entre a meia-noite e a uma hora já terei, novamente, acabado com mais uma garrafa deste vinho e deverei, então, sair, continuar o que foi começado.

23:16

6

Aléphico, 21/4/99

22:34

Como um bom leitor perspicaz, você deve ter notado a página anterior rasgada deste diário, interrompendo a numeração, que pula do quatro pro seis.

De fato, sou eu a pessoa que mais desejaria lê-la, uma vez que foi escrita por mim mesmo, em profundo delírio, e depois arrancada e jogada fora.

Experimento uma sensação estranha agora. Uma espécie de minuto de clareza, sobriedade. Uma calma profunda e massiva, misturado a um profundo medo e sentimento de culpa.

O que