Uma questão de lhufas
Eu sinto muito por tantas coisas, que nem sei se sinto qualquer coisa
mesmo. Uma simples questão de referencial, que uma vez perdido, só
retorna por religião ou ideologia. Ou tratamento psiquiátrico, o que,
de certa forma, acaba conduzindo a uma das duas opções anteriores.
Só quem já passou pelo estágio de se sentir culpado por todos os
males do mundo, pode experimentar a conquista do estágio seguinte,
quando a própria noção de culpa se desfaz e a mente ganha a liberdade
psicótica. Não falo da simples culpa, como a que eu teria sentido
quando empurrei aquela menininha de sete anos na lama se eu sentisse
ainda algo, mas da culpa real, daquele tipo de consciência
extracorpórea que fez John Fante saber que era ele que causara um
terremoto por ter comido uma viúva velha.
Que mal há numa simples menina de sete anos com o vestido branco
enlameado? Alguma guerra começou ou terminou? Algum navio afundou? Um
avião explodiu? Uma estátua começou a falar e andar, as paredes a
jorrarem sangue? Alguma fêmea de leão entrou no cio no meio da Savana
por causa disso?
Não, nada disso aconteceu. E, além do mais, eu tinha uma
justificativa. Ela era filha de um cara que me devia oitenta pila há
mais de trinta anos. Ela tinha um daqueles sorrisos maus de criança
que se esgaçam quase que de orelha até orelha, e olham para você de
forma maligna dizendo:
--- Vamos brincar tio?
Sim, a perversidade oculta numa declaração diabólica. Com quanto
prazer não vi aquela cara de triunfo e prazer que toda criança ostenta
contra nós como uma silenciosa vitória, transformar-se no triunfal
grito de medo e espanto.
Tudo era perfeito. O sol brilhava, os pássaros trinavam, as ovelhas
baliam e os camelos formavam grandes cáfilas rumando para a escola de
segundo grau onde eu estudara e aprendera uma série de palavras
inúteis que talvez eu nunca usasse. A lama estava quente e úmida
devido ao calor do dia e se formara ali na beira da calçada por causa
de um caminhão de peixe que por ali passara deixando um rastro de água
fedorenta atrás. Gelo que gelara o peixe, mas tivera como destino
final juntar-se ao barro para compor a lama fedorenta da vingança. A
menina estava tão feliz por ter sido dama-de-honra do casamento que
achou que poderia sair brincando com seu vestido branco e novo
enquanto papai e mamãe não estavam olhando. Ela nem reparou no cheiro
forte de bebida que me impregnava o corpo, nem no olhar de astúcia
planejativa.
Porque deveria? Eu tomara uma garrafa de uísque doze anos, que pode
ser facilmente confundido com perfume, tão belo é seu aroma. E
enquanto todos juraram que eu não apareceria no casamento, eu estivera
lá feliz e comportado e sorrindo num canto da igreja com jeito
superior a todos. E quando todos pensaram que eu ainda nutria um ódio
secreto por um dos noivos, eu triunfei sobre todos eles. Eu havia
provado que era um cara legal. O noivo havia me envolvido num esquema
de fraude bancária no qual ele saiu cheio da grana e eu peguei dez
anos de cadeia, sentença que pude trocar por seis meses de serviço
comunitário.
Já ela, a noiva, fora a mulher que prometera que nunca seria de outro
homem no dia em que a conheci e quando fui condenado me abandonou
dizendo que esperava que eu apodrecesse e morresse como um verme.
Mas eu provei que estava acima dos sentimentos normais de um ser
humano e compareci ao casamento. Me embedei, embora com certeza não
precisasse disso para encarar aquela prova que eu podia dar conta
facilmente. E quando depois de me conter por duas horas de missa
encontrei aquela emissária do mal de sete anos, lembrei-me da dívida
que seu pai tivera comigo numa mesa de pôquer da adolescência. E foi
por isso, tenham certeza, que ela mereceu a lama. E se envergonhe
aquele que disso mal pense.
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