Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Uma questão de lhufas

Eu sinto muito por tantas coisas, que nem sei se sinto qualquer coisa mesmo. Uma simples questão de referencial, que uma vez perdido, só retorna por religião ou ideologia. Ou tratamento psiquiátrico, o que, de certa forma, acaba conduzindo a uma das duas opções anteriores. Só quem já passou pelo estágio de se sentir culpado por todos os males do mundo, pode experimentar a conquista do estágio seguinte, quando a própria noção de culpa se desfaz e a mente ganha a liberdade psicótica. Não falo da simples culpa, como a que eu teria sentido quando empurrei aquela menininha de sete anos na lama se eu sentisse ainda algo, mas da culpa real, daquele tipo de consciência extracorpórea que fez John Fante saber que era ele que causara um terremoto por ter comido uma viúva velha.

Que mal há numa simples menina de sete anos com o vestido branco enlameado? Alguma guerra começou ou terminou? Algum navio afundou? Um avião explodiu? Uma estátua começou a falar e andar, as paredes a jorrarem sangue? Alguma fêmea de leão entrou no cio no meio da Savana por causa disso?

Não, nada disso aconteceu. E, além do mais, eu tinha uma justificativa. Ela era filha de um cara que me devia oitenta pila há mais de trinta anos. Ela tinha um daqueles sorrisos maus de criança que se esgaçam quase que de orelha até orelha, e olham para você de forma maligna dizendo:

--- Vamos brincar tio?

Sim, a perversidade oculta numa declaração diabólica. Com quanto prazer não vi aquela cara de triunfo e prazer que toda criança ostenta contra nós como uma silenciosa vitória, transformar-se no triunfal grito de medo e espanto.

Tudo era perfeito. O sol brilhava, os pássaros trinavam, as ovelhas baliam e os camelos formavam grandes cáfilas rumando para a escola de segundo grau onde eu estudara e aprendera uma série de palavras inúteis que talvez eu nunca usasse. A lama estava quente e úmida devido ao calor do dia e se formara ali na beira da calçada por causa de um caminhão de peixe que por ali passara deixando um rastro de água fedorenta atrás. Gelo que gelara o peixe, mas tivera como destino final juntar-se ao barro para compor a lama fedorenta da vingança. A menina estava tão feliz por ter sido dama-de-honra do casamento que achou que poderia sair brincando com seu vestido branco e novo enquanto papai e mamãe não estavam olhando. Ela nem reparou no cheiro forte de bebida que me impregnava o corpo, nem no olhar de astúcia planejativa.

Porque deveria? Eu tomara uma garrafa de uísque doze anos, que pode ser facilmente confundido com perfume, tão belo é seu aroma. E enquanto todos juraram que eu não apareceria no casamento, eu estivera lá feliz e comportado e sorrindo num canto da igreja com jeito superior a todos. E quando todos pensaram que eu ainda nutria um ódio secreto por um dos noivos, eu triunfei sobre todos eles. Eu havia provado que era um cara legal. O noivo havia me envolvido num esquema de fraude bancária no qual ele saiu cheio da grana e eu peguei dez anos de cadeia, sentença que pude trocar por seis meses de serviço comunitário.

Já ela, a noiva, fora a mulher que prometera que nunca seria de outro homem no dia em que a conheci e quando fui condenado me abandonou dizendo que esperava que eu apodrecesse e morresse como um verme. Mas eu provei que estava acima dos sentimentos normais de um ser humano e compareci ao casamento. Me embedei, embora com certeza não precisasse disso para encarar aquela prova que eu podia dar conta facilmente. E quando depois de me conter por duas horas de missa encontrei aquela emissária do mal de sete anos, lembrei-me da dívida que seu pai tivera comigo numa mesa de pôquer da adolescência. E foi por isso, tenham certeza, que ela mereceu a lama. E se envergonhe aquele que disso mal pense.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski