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O ensaio de um novo tempo

Foi assim que eu conheci Paullette. Aquela cintura estonteante me fascinou desde o princípio e tudo que pude dizer foi, simplesmente, não uma fala, mas um mero gemido de espanto.

É, de fato, eu amava Paullette. Nos conhecemos naquele mesmo bar da lagoa onde hoje ela trabalha de garçonete. Não, não era tão gorda assim na época e nem tinha a cicatriz no rosto que hoje lhe torna tão característica.

Paullette sempre foi uma guerreira... não necessariamente um lutadora, pois sempre preferiu resignar-se com a derrota inevitável do que ir até o fundo em suas convicções. O resultado era uma moça aguerrida, egoísta, simpática, completamente sedutora e oscilante em suas opiniões pessoais. Paullette se arriscava muito.

Devo confessar uma coisa a vocês, como ilustração do que digo: Paullette era tão louca e irresponsável que jamais me pediu que usasse camisinha. E pelo visto continua a mesma, com exceção do peso, da cicatriz e do filho de dois anos para criar.

Ah, sim, a criança. Pai desconhecido, é o que dizem. Meu alívio é que só foi nascer um ano depois de eu e ela termos terminado tudo. Sim eu também não usava camisinha com Paullette e, antes que feministas me acusem por chamá-la de louca e irresponsável, eu confesso: sou também um louco e irresponsável. Mas, uma verdade há de se convir, é muito mais cômodo ao homem ser irresponsável do que à mulher. É claro, homens não menstruam uma vez por mês, homens não têm filhos de mães desconhecidas e homens possuem apenas um quinto da chance que uma mulher tem de pegar uma doença qualquer sexualmente transmissível. Resultado: as mulheres crescem sexualmente reprimida pelos pais desde o nascimento e vivem sexualmente reprimidas pelos maridos até a morte.

Mas Paullette não. Paullette era louca e irresponsável, mas apreciava uma foda como poucas pessoas no mundo são capazes.

Tomei meu trago e criei coragem. Vê-la ali no balcão, com rosto triste, me deprimia muito. Não que ainda amasse, mas pela mulher que um dia amara. Sentei para conversar. Havia coisas demais que eu queria dizer, coisas demais que ficaram presas no decorrer dos anos, coisas demais que queriam ser lembradas como bons tempos, porque, afinal, se eles não existiram, fazia-se necessário que algo viesse preencher esse espaço em branco, esse vazio, essa necessidade. Nem que esse algo fosse uma memória distorcida, por mais mentirosa que fosse. Era algo em que pudéssemos acreditar, e isso já nos bastava.

Sabe, acho que de uma forma ou de outra, ela foi a única mulher com quem me envolvi e não guardei, posteriormente, rancores. Talvez porque minha parcela de culpa fosse muito maior que a de mágoa.

Pedi-lhe um uísque. Tinha dois anos que não nos víamos, e ela parou um instante me fitando, sem saber ao certo o que fazer ante minha aparente indiferença. Eu podia sentir a carne dela pulsando. O sangue dela sempre foi quente, e o gemido doce.

Preferiu manter silêncio também, servindo-me um uísque e sentando num banco, fingindo distrair-se com as contas do bar. Eu precisava falar algo. Um nó sufocava a garganta e uma espécie de ódio contra mim mesmo me imobilizava. O que eu queria afinal?

Sexo. Era a única resposta que eu conseguia encontrar.

Mas era mais que isso, era também alívio, era também redenção, era também desculpas pelos meus erros cometidos. Era tudo e mais: sublimação. Sim, essa era minha verdadeira busca, uma espécie de Graal existencialista, esquecer de vez a mim mesmo e sublimar-me, realizando o ato perfeito, o momento no qual me seria possível ignorar todo meu passado, todos meus medos, todas minhas culpas, todos meus orgulhos, escapar tanto do sucesso quanto do fracasso alcançando algo que estivesse fora dos dois: sublimar-me.

--- Paullette ...

A voz saiu rouca, baixa, embargada, e ela não ouviu, ou ao menos fingiu que não ouvira. Seria páreo duro, Paullette era uma guerreira como já frisei.

--- Paullette --- repeti, dessa vez com mais convicção.

Ela olhou pra mim, com olhos apáticos e vítreos, num gesto de automatismo profissional e impessoalidade:

--- Sim?

Senti as palavras arranhando a garganta, senti a excitação de um momento que se aproximava e eu não conseguia entender direito seu significado. Nem prever seu desfecho. Apenas a leve e morna excitação quente que me preenchia, alguma coisa importante estava em jogo. "Águas paradas são águas profundas" diz um provérbio alemão... ou vice-versa, não me lembro.

--- É bom te ver, sabia? Como é que cê tá?

Por um momento fiquei sem saber se eu odiara ou amara aquela mulher, ou o quanto de cada ao mesmo tempo. Um misto de cinismo e sinceridade visceral jogada ao extremo.

Ela baixou o rosto sem esboçar reação nenhuma, e ficou ali, por quase um minuto olhando parada em direção ao vazio que estava além do dinheiro do bar à sua frente. Por fim ela esboçou de leve um sorriso nos lábios que morreu rapidamente, dissimulado num tremor.

--- Ora, ora... Anacreonte von Giq, quem diria? Que ventos o trazem?

Balancei meu copo e virei o uísque, sentindo cada nuance que naquele momento se acentuava. Olhei novamente pra ela, até que o brilho que havia em meus olhos atingisse o brilho que havia nela. Sublimação. Será possível traduzir em palavras essa única palavra?


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