Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Quem precisa de mulher quando se tem cafeína?

Quem não sabe fazer café, é claro, seria a primeira resposta, pois aí o sujeito precisa de uma mulher que saiba fazer um café quentinho pra ele. Mas não era do café propriamente que eu ia falar, até porque já cansei de falar de café. Resolvi variar um pouco e falar de mulher.

O sujeito era um escritor, na faixa de lá pelos seus quarenta anos, decadente, comunista, mas não viado. A vida inteira procurara por mulher desesperadamente, como uma necessidade orgânica. Depois de algum tempo, é claro, ou elas o deixavam ou ele fazia algum vexame ou ele sumia... e tudo terminava.

Na adolescência, uma namoradinha. Ele tinha dezoito e ela catorze, o que não impedia que ele metesse a vara na menina, escondidos do pai dela, é claro. Achava ele que dessa vez daria certo, que seria a mulher que ficaria com ele até o fim, ou então a que o esfaquearia pelas costas de vez, aquela em que ele confiaria e que o humilharia depois.

Mas nem um nem outro aconteceu. A animosidade da juventude se encarregou por terminar as coisas. Ele juntou suas coisas e foi pra Colômbia, passar um ano morando junto com guerrilheiros, pegando até em armas ocasionalmente, embora afirme até hoje que jamais disparou contra alguém. Um ano que lhe rendeu seu primeiro livro. Um ano durante o qual juventude nenhuma suportaria a carga de celibato, de forma que eles terminaram.

Ela arranjou um namorado esqueitista, se formou em pedagogia e foi ser professora primária no interior de Goiás, onde o namorado continuava a andar de esqueite e fazia bicos de marcenaria por vez ou outra, ofício que aprendera fabricando rampas de madeira.

Mas isso tudo estava longe agora. Isso fora na juventude, e mais de vinte anos se passaram até que nessa noite o escritor, sozinho na sala, decide se acaba com sua vida ou volta a escrever.

A garrafa de uísque está quase vazia num canto, já é a segunda da noite... ou dia, uma vez que começara a beber eram duas da tarde. O estômago vazio dói, úlcera de álcool e café, que é amortecida com mais álcool. Uma tira em trapos sustenta fechado o roupão antigo que o escritor usa e que um dia fora de seu pai. A mesma tira com a qual ele pensa agora em se enforcar. Uma pianista russa solta seus dedos no aparelho de som, muito alto, e, no escuro, ele pensa no que aqueles dedos não seriam capazes de fazer soltos numa cama.

Não, não. Tenho que interromper um pouco a narrativa para explicar algo. Não é por amor, carência ou falta de sexo que sofre o escritor nesse momento, à beira do suicídio. Digo isso até mesmo porque, agora, enquanto ele, na sala, de cueca e roupão, chora ao lado de duas garrafas de uísque quase vazias, ouvindo som a todo volume, sua mulherzinha dorme como um anjo no quarto ao lado, depois de um longo tempo em que ele esteve ao lado dela, cuidando para que fosse devidamente comida. Não, não é porque ela não o ame ou o escritor não mais ela ame que ele sofre, nem por falta de sexo. A coisa é pior.

Esclarecido esse ponto, voltemos à história.

Uma vez na Colômbia, o escritor arranjou lá uma mulher, com quem vivera durante o tempo que lá estivera. Um dia, simplesmente voltara. Seu livro estava pronto... não escrito ainda, mas já todo formado no grande mosaico mental que se desenhava.

O livro vendera bem. Com o primeiro cheque o escritor passara uma noite inteira num puteiro do Rio. Pegou uma doença. Enrolou, enrolou e nunca ia no médico, a não ser um ano depois, quando a coisa havia se agravado e tiveram que operá-lo. Uma carga de antibióticos e um testículo a menos, foi o resultado disso. O testículo restante era a única coisa que deixara o escritor aliviado com o desfecho. Achara que nunca iria ter filhos por causa disso, mas se enganou, e um dia veio ao mundo o belo casal de gêmeos pra quem todo mês ele paga uma pensão. Moram com a mãe, no Paraná.

Tudo parecia perfeito. Até que ontem, andando pela rua, ao olhar na banca os jornais, como sempre fazia, uma jovem por ele passou, com o sorriso mais belo do mundo, provocando dentro dele um quebra, um descompasso, uma avalanche dos sentidos.

Por mais que bebesse, aquele sorriso entranhara dentro dele, rasgando ao meio toda sua vida, jogando na lama todas suas crenças, tudo que aprendera. Era o sorriso da morte, o chamado para a destruição, a satisfação expressa na cara de um adolescente ao comprar pela primeira vez uma revista de sacanagem. O proibido. A ânsia. A promessa de recompensa por aquilo que transgride, insulta. A mulher perfeita que se desfaz no momento em que a toca. O desejo de morte.

A cidade buzinava intranqüila ali embaixo, e ele aumentou ainda mais o som. Chorando, ele amarrou no lustre uma ponta da tira que segurava antes o roupão, fazendo com a outra um laço. Subiu na cadeira, enfiou a cabeça, esticou a perna no ar e deu o passo pra morte.

Sentiu a vista turvar. Sentiu o peito doer. O pescoço doer. A cabeça doer e os pés formigarem. Estava tonto da bebida, e as coisas começaram a apagar.

Ela acordou irritada. Tudo bem que ele bebesse e passasse a noite ouvindo música, mas ela tinha que estar acordada de manhã para trabalhar. Levantou e foi até a sala. Acendeu a luz e viu o corpo balançando, ainda se contorcendo no ar. Foi até o som e abaixou o volume. Atravessou até a cozinha caminhando irritada. Pegou a tesoura, voltou, subiu na cadeira e cortou a tira do roupão, a mal improvisada forca. Olhou com um misto de pena e ódio enquanto ele se contorcia no chão de dor. Apagou as luzes, ajudou-o a levantar-se e levou-o cambaleante e tossindo pra cama. Amanhã com certeza ele não escaparia de uma boa prensa, mas agora ela precisava dormir.

Deitaram-se na cama. O escritor sentia em seu pescoço a faixa de dor que no dia seguinte seria um belo colar roxo. Além disso, os braços e pernas doíam muito. Conseguira finalmente tomar sua decisão, voltaria a escrever. Amanhã mesmo, ao acordar, tomaria um banho e recomeçaria a escrever. "Desculpa", balbuciou ele no escuro, sem obter dela nenhuma resposta. Abraçou ela e disse, "te amo". Ela correspondeu com má vontade ao abraço, beijando-o e dizendo "tá, eu também, boa noite".

Ele sentiu vontade de chorar e dizer algo que não conseguia expressar, e ficou mais meia hora pelo menos acordado sentindo no rosto a respiração suave dela que dormia. A linguagem nunca era o suficiente para expressar o todo. Abraçou com mais força ela e pegou no sono enquanto pensava sobre o que escreveria amanhã.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski