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Uma tarde

Quando, numa tarde, Anacreonte acordou de sonhos inquietos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num gigantesco verme. Diferente do que possa o leitor pensar, ele tornara-se, ao contrário do passivo inseto kafkiano, um dos mais vis e infames vermes, um verme realmente autêntico que, mesmo antes da mudança, apresentava todas as características mais imundas da sua espécie.

Porém, sempre com sua forma traiçoeira e rastejante, armou um esquema infalível. Simularia a própria morte!

Sim, por que não? Por que agüentar as agruras de uma vida inteira para no fim ser recompensado com apenas uma morte? Por que não desfrutar do prazer de morrer incontáveis vezes invés de uma única vez, como todo mundo? Por que insistir em ficar vivo, matando aulas de latim e alemão para escrever seus contos, invés de desfrutar o prazer de sua morte? Ou por que não gastar seu tempo desenvolvendo os estudos de Thomas de Quincey sobre a estética do assassinato? Quantas considerações sobre a reprodutibilidade benjaminiana de uma bela obra de arte no ramo do assassinato não se podem fazer? Quantos refinamentos na arte da matança não trouxe o século 20? O que dizer então da cultura pop das estrelas do homicídio?

Mas não. Nenhuma destas perguntas receberia um dia uma resposta. Afinal este era o mundo de Anacreonte, um mundo onde as vacas mugiam, bebês choravam e as perguntas continuavam. Continuavam a existir e a ficar selvagemente insolvidas. A moeda passara a valer apenas a metade em apenas um mês mas, mesmo assim, ia, todo dia, o ministro pra tevê, dizer para todo mundo: "Não, o brasil não está fudido! Não se preocupem, tudo está sob controle!". Logo em seguida a mídia trazia o jornal e tristemente constava-se aquilo que já sabia-se: Sim, o brasil está fudido! E todo mundo entrava em pânico, pois tudo estava fora do controle. Tudo! Tudo, menos a repressão policial. Afinal, a miséria do país sempre foi esperada, ou melhor (dispensando o eufemismo), planejada.

Só restava isso então, matar ou morrer. De súbito, assolado por essa compreensão, Anacreonte bolou um plano cuja sordidez ultrapassava quaisquer limites antes impostos. Primeiro reescreveu a bíblia, contando como o diabo criou o universo e depois, entediado, criou a raça humana, para que essa pudesse viver livre e desfrutar das maravilhas que existiam. Contou como um dos demônios, ambicionando poder, auto-intitulou-se deus e passou a escravizar e atormentar os seres humanos, fomentando guerras e impondo-lhes regras.

Depois, na segunda parte de seu plano, Anacreonte matou-se. Jogou uma corda no teto e enforcou-se. Após seu enterro, começou a terceira etapa e foi viajar, dar um giro pelo país para conhecer as belezas. Mas não sem antes, é claro, encarregar-se pessoalmente de dar um tiro em cada uma das pessoas que lhe rodeavam, amigos, família, vizinhos. Matou-os todos. Todos pelas costas.

E foi assim, com uma maçã e um tiro enterrados nas costas, que ele fugiu e viajou o mundo. Só os canalhas sobreviviam. Os canalhas e os vermes.

E o mundo segiu indiferente, afundando dia a dia na mesma merda de sempre.


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