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O esvaziamento do desejo

Era uma garota adorável. Não só adorável, mais do que isso, era adorável e linda. Deslumbrante. Apaixonante. Mal punha meus olhos nela e eles se fixavam, contraíam minha face à força, impondo-lhe um sorriso abobado, e forçavam minha boca a uma salivação excessiva.

Kanne, era o nome dela. Ah, sim, Kanne. Nunca confie nas mulheres que começam com K. Kanne era toda especial. No dia em que nos conhecemos nos apaixonamos. Passei a tentar evitá-la, mas sempre que a via ia correndo admirá-la. Que peitos! E que corpo! E que rosto! E que bocetão não devia ter aquela mulher...

Não tardou para que, sempre que ela estivesse sem o marido por perto, começasse a me passar bilhetes provocadores. Era uma Vulva Falofágica. Autêntica e demolidora. Dessas que fazem qualquer homem adulto chorar na cama de emoção após uma foda bem dada. E com a experiência que tinha, com certeza a foda seria bem dada.

Os amigos notaram e me incentivavam. Admiravam minha coragem e exaltavam a audácia necessária para bem fuder aquela deusa. Criadora do prazer e desejo, era ela a responsável por todo impulso carnal. Salivava toda vez que pensava nela. Arranjava mulheres, contratava putas, sempre tentando achar uma que lhe equivalesse, mas sempre em vão. Ele era perfeita.

Ao mesmo tempo em que a desejava, a temia. Temia por tudo aquilo que ela representava. Temia pelo desabamento de meu mundo. Ela, e só ela, dava razão a minha própria existência. Ela era o mal que me mantinha vivo. A doença que me fazia andar e respirar. A degeneração de meu corpo que me tornava jovem.

Um dia enlouqueci. O desejo pressionava minhas têmporas e uma ânsia subia-me à boca. Uma promessa louca e irresponsável que fiz então a mim mesmo: "Vou comê-la! E pronto! Nem que isso represente o fim da minha vida, nem que isso represente todo o cessar de minha existência!"

E era verdade. Sabia que uma vez consumado o fato, minha vida perderia todo e qualquer sentido. Estaria completa. Vazia. Sem rumo. Tudo que eu mais desejara ou poderia jamais desejar eu teria obtido. O Gozo supremo e final. Depois de fudê-la, nada mais me restaria a não ser esperar pela morte. Caminhar amargamente pelo resto dos meus dias, tonto, desorientado, esperando com paciência meu fim chegar, pois nada mais me prenderia a este mundo.

Lembrei da Karla. Menina linda por quem me apaixonara na segunda série do primário. Outra maldita linda que começava com K, e que ainda por cima meu irmão me dissera que eu ia casar com ela quando eu tivesse vinte e quatro. Lembrei da Liz, que na mesma série começou a estudar comigo e também era linda. Mas essa não começava com K, mas sim com L, então deixa pra lá. O curioso é que ambas tiveram filho com dezesseis anos.

Por fim tomei coragem, liguei pra Kanne e combinamos o dia, hora e local em que nos encontraríamos e trairíamos o marido dela, o que era a coisa que mais me envergonhava e me torturava em toda essa situação. Nos encontramos. Olhava-a fixamente, antevendo o prazer. Beijei-a. Ela repreendeu-me. Disse que tinha marido. Pediu para irmos à minha casa. Fomos. Transamos loucamente, insanamente e por várias e várias vezes. Era o transbordamento do prazer, e eu tinha a sensação de que ele iria nunca acabar. Ficamos a noite toda e, quando por fim ela me deixou, restaram somente as marcas doloridas em meu corpo, as mordidas, o cansaço, a memória alucinada que lutava em vão revisando tudo para tentar nunca esquecer nenhum detalhe sequer e a certeza, a triste, infinita, profunda e insondável tristeza de que tudo terminara. De que era este o fim e nunca mais nos juntaríamos de novo numa cama, ou em qualquer outro lugar. Ficava a certeza de que nunca mais a veria de novo, a não ser em raros e longínquos abanos de mão em corredores compridos ou bares lotados.

Nenhuma mulher, nenhum amigo, nenhum bar, nenhuma cerveja, nenhum estudo ou conhecimento, nenhuma promessa de alegria, nenhuma puta, nenhuma droga, nada, nada mais me serviria nem tiraria o gosto amargo que pra sempre se instalara em minha boca, minha língua e olfato.

Mas mais do que isso. Algo mais triste, mais profundo e mais indizível. Uma angústia e uma sensação eterna de fim, de perda de sentido, de esvaziamento. Esvaziamento do desejo. Sim, era isso, esvaziamento do desejo e de toda e qualquer forma de alegria ou vontade de viver que existisse neste mundo. Apenas uma vaga ânsia pela descontinuidade, pelo término, a morte, o fim. O desejo fora esvaziado, e com ele todo o sentido e qualquer ação. Infinitississímo nada. Só isso restou. Nada.


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