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Perfeição

- Seu viado! Canalha!

- Vadia! Piranha!

- Seu filho duma puta! Cala a boca senão vou te encher de porrada!

- Vai o caralho! Eu é que vou te cubrir de soco e te fuder toda depois.

- Tu não consegue fuder nem com vaca morta, seu brocha!

- Quando eu rasgar tua buceta tu vai calar a boca, puta inchada!

Era sempre assim. Bebíamos o dia todo, até que lá pelas duas ela começava a berrar e me xingar da poltrona. Eu respondia e berrava com ela do sofá. Não sei porque, mas sempre acabávamos a noite assim, berrando baixaria, ela da poltrona e eu do sofá. Por mais que mudássemos de lugar, de posição, independente de quem começasse a noite aonde, o que impressionava era que o fim era sempre assim, ela sentada, quase deitada, na poltrona e eu sentado, quase deitado, no sofá.

Os vizinhos reclamavam e batiam na parede, às vezes chegavam até a vir bater na porta exigindo que abríssemos, mas simplesmente ignorávamos. Ficávamos lá, nos insultando por cerca de meia hora, uma hora nas noites boas, até que o tom de voz ia baixando, baixando, e o sono chegava e dormíamos, ela na poltrona e eu no sofá, sempre.

Uma ou outra vez chamaram a polícia e viviam nos ameaçando expulsar do prédio... mas sempre dávamos um jeito.

No meio da noite, quando esfriava, e no inverno esfriava muito mesmo, ela se levantava e vinha pro sofá. Deitava e me abraçava. Gelada de frio. Gelados ambos. Nos beijávamos um tempão até que eu me levantava, ia até a cama, pegava o cobertor e o travesseiro e levava pro sofá pra dormirmos melhor. Nos abraçávamos e dormíamos, quentes, saciados.

E dia a dia era assim. A vida era doce e tranqüila. Vivíamos de um dinheiro que ela roubara do governo... golpe na previdência social ou algo assim.

Um dia, sem explicação, notei que tínhamos começado a beber menos, e que já não brigávamos mais com aquela mesma intensidade que antes. Os xingamentos foram ficando cada dia mais raros, escassos e amenos. Mas não era só isso. Notei que ela andava triste todo o tempo, até mesmo quando bebia, e que estava cada vez mais pálida e magra. Devia estar perdendo uns quatro quilos por semana.

Fiquei perplexo e pus-me a observá-la. Um mês depois e nossas brigas já estavam durando apenas uns tristes cinco minutos. E, ainda, constatei que, realmente, ela emagrecia e definhava muito rápido.

Tentei falar com ela. Ela apenas evitava o assunto e desviava minha atenção com aquele olhar de beleza que ela sempre tivera. Bebia muito menos do que antes também, e agora, às vezes, nem brigávamos. Ela simplesmente bebia, quieta no sofá, até que apagava. Eu apagava as luzes e, me ajoelhando na frente dela, punha a cabeça em seu colo e começava a chorar. Ela acordava, alisava meu cabelo, me beijava e dizia que não era nada, nada pra se preocupar. E assim eu dormia, ali, enterrando a cabeça entre as cochas macias dela, inebriado pelo calor, o sabor e o cheiro doce que só uma buceta jovem sabe ter.

Se ela parava de beber, eu por outro lado, aumentava incessantemente a dose. Talvez para compensar, talvez para animá-la ou, talvez, apenas pra aliviar a dor. Não chamei nenhum médico, nem tampouco ela. Simplesmente acompanhei-a, dia a dia, noite a noite.

Uma noite, lá pelas dez horas, eu completamente bêbado e ela quase sóbria, ela olhou pela janela e ficou longamente a fitar a rua. Ficou um tempão lá, parada, estática, até que começou a tremer, tremer e chorar, convulsivamente.

Levei-a ao nosso sofá e deitei-a. Nem sei pra que ainda tínhamos a cama, nunca a usávamos. Nos beijávamos com a intransigência e insistência de quem sabe reconhecer o fim chegando.

- Estou morrendo - segredou-me ao ouvido, em voz débil.

- Não! - sussurrei. - Por quê assim? Por quê você?

- Eu te amo!

- Eu sei.

- Estou morrendo porque este é o caminho que quis. Este é o caminho que este destino amaldiçoado que me gerou quis que eu seguisse. Sou uma Vulva Falofágica, não uma simples mulher. Filha do Destino e da História, gerada na Loucura e nascida na Ressaca, fui condenada à, assim como minhas irmãs, vagar pela terra, em busca de homens, para vingar o choro das mulheres. Preciso dos falos para viver, sem eles nada sou, não vivo, morro.

Balancei a cabeça e babulciei algumas palavras, confuso, tonto, sem entender nada. Ela estava delirando, eu concluí. Ela continuou:

- Quando aqui entramos pela primeira vez, tu serias apenas mais uma noite de alimento para mim. Aquela noite, após transarmos, devorei-te o falo, e, tão bêbado estavas que nem acordastes. Porém era tarde demais, e descobri que estava irremediavelmente presa e apaixonada por ti. Curei-te a ferida e decidi que arcaria com o ônus de minha paixão. Amaria a ti e a ti somente, por ti morrerei. Após transarmos descobri que, depois de ti, falo nenhum mais me saciaria e, assim, deveria eu morrer pela ausência de meu alimento único. Eu te amo!

Dizendo isso morreu, e as lágrimas que corriam em torrentes pelo meu rosto caíram em sua face, enrugando-a. Beijei-a por muito tempo, milhares de anos talvez. Depois levantei-me, peguei algumas roupas, o dinheiro que restava e desci.

Era por volta de uma da manhã. Morávamos em um apart hotel e no balcão um rapazinho me saudou.

- Quero pagar minha conta - disse-lhe.

- Pois não senhor, qual seu nome?

- Anacreonte, quarto 502.

- Com cartão?

- Não. À vista.

Ele fez as contas, falou-me o preço e entreguei-lhe um bolo de notas que eram mais que suficientes. Antes de virar as costas, disse-lhe:

- E, por favor, peça à funerária para vir aqui levar o corpo da senhora Anacreonte.

Fui embora. Sem pegar meu troco e ignorando a avalanche de perguntas que o rapaz fazia. Teria que pegar um taxi lá fora. Meti a mão dentro das calças e toquei na cicatriz onde, um dia, estivera meu pau. Antes de abrir a porta de saída do hotel, ainda pensei: "É... tem dias que o mundo é realmente um lugar estranho...".


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