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A grande história

Outro dia, enquanto me espreguiçava em meu quarto, deitado em meu colchão, algo incrível aconteceu: uma lagartixa, toda branca, passou correndo por mim e subiu a parede! Tudo bem... até concordo que nisso não há nada de incrível. A verdade é que eu não tinha a mínima idéia de como começar esse conto e na hora não me pareceu tão má idéia assim.

Bom, mas o fato é que lá estávamos, eu e a lagartixa, eu no chão, ela na parede. Olhava fixamente para ela que, caminhando sinuosamente até o teto, me devolvia o olhar. Andou até mais ou menos o meio do teto quando parou e ficou olhando fixamente para mim. Nos encaramos. Algo ali ocorreu naquele momento. Um sentimento mágico de ódio ou compreensão, uma reminiscência animal primitiva, invadiu o ar, partilhado pelo olhar entre eu e a lagartixa.

De súbito uma inquietude nos preencheu. A lagartixa, arregalando os olhos, saltou de sua fortaleza aérea, o lustre, em minha direção. Veio com tudo, com as patas escancaradas no ar e o olhar firme e alucinado de um terrorista Kamikaze. Apavorado, tentei desvencilhar-me e escapar daquele que seria o ataque final. Pulei da cama e, ao levantar-me os braços para defender-me, acertei acidentalmente um tapa em meu algoz.

Caí no chão. Ouvi ofegante o barulho de meu inimigo caindo no colchão, e vi com o canto do olho quando, com um salto insano, pulou de minha cama pro chão e saiu correndo porta afora. Levantei-me após muito tempo. Cansado, assustado. Olhei o colchão e constatei que lá ficara um pedaço de meu inimigo, um troféu de minha vitória, um pedaço do rabo que se revirava e contorcia. Joguei-o com um tapa no chão e fui dormir. Tudo aquilo me deixara cansado. Eu havia conseguido. Um dia, quando fosse enterrado, escreveriam em minha lápide "Aqui jaz Anacreonte. Ele feriu uma lagartixa em feroz combate".

Acordei no outro dia e, para minha surpresa ele, o rabo não estava mais onde eu o deixara. Durante a noite andara cerca de um metro e meio até a porta. Ele estava fugindo. Deitei-me sorrateiramente ao seu lado e pus-me a observar. Daquele rabo toda uma nova lagartixa surgia por regeneração. Do toco do rabo, pequenos olhículos me olhavavam assustados, e embaixo, no lugar onde agora era seu abdômen, pequenas perninhas, patículas em verdade, cresciam. Fitei em espanto. Fizera uma grande descoberta. Eu, sozinho, descobrira algo que iria revolucionar toda a biologia. Prendi o rabo num potinho plástico vazio e fui dormir. Estava exausto, e precisava descansar para anunciar ao mundo minha descoberta. Dormi com a cabeça recheada por milhões de idéias e pensamentos. Eu era um gênio guerreiro e em minha lápide escreveriam "Aqui jaz Anacreonte. Ele feriu uma lagartixa em feroz combate. Ele revolucionou a ciência".

Acordei no dia seguinte. Levantei-me. Fiz minha higiene pessoal e fui comer algo, coisas que há dias eu não fazia. Vesti minha melhor roupa e fui ver meu experimento. O rabo era agora um uma lagartixa adulta, já perfeitamente desenvolvida. Duas moscas entraram no pote e lutavam agora contra a lagartixa. Não entendia como podiam elas terem entrado. Verifiquei a tampa do pote que estava firmemente trancada. Num momento de trégua, entre as moscas e a lagartixa, esta notou-me, pela primeira vez. Lançou-me um olhar de ódio, do ódio mais profundo e feroz que eu já vira. Foi quando lembrei-me que aquele ex-rabo não era apenas um mero experimento, era sim um prisioneiro de guerra meu. Mudei-as, a lagartixa e as moscas para um pote plástico maior, pondo um pouco de comida, água e terra, para deixá-la mais à vontade. Fui dormir. Isso me dera muito o que o pensar, era melhor esperar pelo novo dia. Em minha lápide escreveriam "Aqui jaz Anacreonte. Ele feriu uma lagartixa em feroz combate. Ele revolucionou a ciência. Ele respeitou a Convenção de Genebra".

Acordei no outro dia e fui logo ver meus prisioneiros. A cena que vi então foi a mais indescritível de todas. No centro do pote estava toda a terra que eu pusera ontem ali acumulada. O potinho da água estava virado, espalhando água ao redor da terra, que parecia agora um ilha tropical. Bem no centro da terra crescera, da noite pro dia, um enorme pé de feijão, que ia até a tampa do pote, embaixo da qual repousava docemente a lagartixa, exibindo orgulhosamente seus filhotes, pequenas lagartixazinhas, que brincavam ao redor dela. As moscas dormiam tranqüilas num ninho feito no alto do pé de feijão, enquanto pequenas mosquinhas voavam ao redor. Com uma lupa examinei a água e, ainda mais surpreso, constatei que minúsculos peixes nada ali agora. Eu criara um mundo. Eu, sozinho, criara todo um mundo. Fui deitar-me e logo adormeci num sono febril. Em minha lápide certamente fulgurariam para todo o sempre os dizeres "Aqui jaz Anacreonte. Ele feriu uma lagartixa em feroz combate. Ele revolucionou a ciência. Ele respeitou a Convenção de Genebra. Ele se tornou um deus".

Porém, naquela noite, o terrível aconteceu. Meu espanto e alegria eram tão grandes que falhei em tomar as devidas medidas de segurança e proteção. Fui pego desprevenido no meio da noite. Estava dormindo quando ouvi o barulho ensurdecedor de milhares de pezinhos marchando em minha direção. Levantei num salto e lá estava, o maior exército de lagartixas que jamais, homem ou mulher algum, jamais vira anteriormente. Eles vieram resgatar seus prisioneiros e impingir-me a punição definitiva. A derradeira vingança na guerra contra os humanos. Investi contra elas, numa luta feroz e insana, abrindo caminho até o meu mundo no pote. Milhares de lagartixa jogavam-se em massa contra mim, ferindo-me, açoitando-me. Cheguei a tempo de ver apenas meu mundo destruído. As pequenas plantas e habitações ardiam em chamas. Com o pote quebrado, a água fluía livremente pelo chão, asfixiando toda a fauna marinha que ali habitava. As moscas voavam perdidas, sem rumo. As pequenas lagartixas, habitantes primevas daquele mundo que estavam agora em sua terceira geração, fugiam confusas, sem nada entender e nada saber quanto àquele suposto resgate. Chorei ao ver meu mundo destruído e tombei ao chão, derrotado, triste. Desisti de lutar, enquanto meus algozes tornaram-se mais e mais alucinados, urinado-me, mordendo-me e chicoteando cada vez mais com suas caudas ferozes, até que a morte, por fim, chegou-me.

No outro dia, após cerimônia simples, os amigos retiraram-se, deixando no cemitério meus restos mortais e a lápide, que guardava os dísticos "Aqui jaz Anacreonte. Ele bebia demais, mas até que ele era legal".


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