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Casamentos, insônia, velórios e outras pragas da humanidade

Tá certo. A vida é mesmo uma bosta. Mesmo quando tudo tá certo, mesmo assim, parece que estamos sempre mal. Não, não falo só de mulher, falho de mulher, política, comida, família, mulher, foda, filosofia, mulher, estudos, trabalho, música e mulher.

Eu devia parar de ler Bukowski, eu sei, é muito cruel quando somos crianças e nos tiram as vendas dos olhos. Mais incômodo ainda é ver as sombras na parede e gritarmos para a multidão obtusa, que vive tranqüilamente sem sequer perceber luz ou treva.

Bem, confesso que não sei porque fui casar. Patrícia... Ah, sim, o bebê, é claro. Patrícia esperava um filho, que podia ser meu. Ninguém mais iria assumir o garoto, e mais para ajudá-la do que por acreditar realmente que ele tivesse qualquer pingo meu, assumi o filho e casamos. Casamos, com direito a bolo, festa, tudo. Tudo menos a igreja, que fiz questão de deixar claro que não queria. Mas aqui estou me remoendo de novo, dois casamentos depois e ainda assim falo de Patrícia.

Mas se me perco agora nessa lembrança, não é sem motivo. Ontem, quando eu saia de manhã cedo pra trabalhar num protesto que ia ter no centro, encontrei o padre Frolino, o mesmo padre que Patrícia queria que nos casasse. Bêbado, bêbado e velho, lembrando o padre decadente que Burroughs fizera no cinema. Eram cinco horas e eu nem sequer havia dormido ainda. Planejava participar da manifestação durante a parte da manhã e voltar ao meio dia para dormir. Três vantagens de se ir dormir após o meio dia: Os malditos mosquitos não te enchem o saco, você não está acordado para sentir o maldito calor derretendo tua gordura e te encharcando de suor e, por fim, a maldita ressaca já passou e você pode dormir tranqüilo como se tivesse o fígado de um bebê.

Mas padre Frolino, padre Frolino foi a melhor ilustração que já tive de que viver é uma merda. Viveu no celibato durante quase toda sua vida religiosa (acho que era o padre que menos escapadas noturnas fazia de toda a congregação a que pertencia) e, ainda assim, era mais capaz do que ninguém de falar de mulher. O homem demonstrava um conhecimento profundo do assunto e, se por um lado a falta de contato lhe dificultava uma compreensão empírica da mulher, por outro lado trazia um benefício enorme que somente o afastamento e a reflexão obsessiva pelo tema (que o perseguia incansável) poderia trazer.

Tinha uma empregadinha na igreja. Muito bonita e namoradeira. E o padre, apesar de velho, sabia preparar bem um ambiente de sedução regado a vinho de igreja. Não tardou muito e os rumores começaram. Mas como rumores são apenas rumores, nunca deu em nada, até o dia em que a tal mulher se demitiu e ele começou a passar dias e dias bêbado.

Eram cinco horas e, como eu disse, pretendia ir numa manifestação, onde xingaríamos um governo filho da puta que joga bombas no seu próprio povo. Aquele dia, a própria polícia estava decidida a se exceder, e atacaria estudantes e índios que juntos protestavam. E eu estaria lá, se não fosse por eu ter nascido homem, que me fez ter um compulsão desesperada por mulher, que me fez comer Patrícia, que fez eu me apaixonar por ela, ou pelo menos por certos componentes anatômicos dela, que me fez casar com ela quando ela engravidou, que fez com que eu conhecesse o padreco, que fez com que eu parasse naquele dia e acabasse deixando de ir na manifestação para carregar para casa um padre completamente bêbado, com cerca de oitenta anos, que vomitava em minha roupa.

Eu sei, sou realmente um idiota. Mas não o ajudei porque era um padre, ou velho, ou por pena da bebedeira, mas sim por saber que aquele estado em que ele se encontrava só podia ter uma única causa primordial: mulher.

O padre não lembrava onde morava. Andamos, andamos, perguntei pela vizinhança, mas nada. Ele se mudara pra ali há pouco tempo, largara a batina, de forma que só os bebuns o conheciam, mas a essa altura eles já estavam em casa.

Levei-o pra minha casa. O joguei num sofá, tomei um banho e fui dormir. Já tinha desistido de ir a qualquer porra de manifestação. O mundo não ia melhorar, estava claro.

Acordei às treze horas, andei pela casa, andei, andei, fui, voltei, e nada, o padre nem se mexia. Cheguei perto e o sacudi em vão, estava morto já.

Droga. A maior parte das pessoas se aborrece com presságios. Acreditam que se encontrarem um passarinho morto pela manhã terão azar, ou coisa que o valha. Eu nunca fui supersticioso, mas mesmo assim não achava nada agradável encontrar um padre morto na sala, logo ao acordar. Patrícia, Patrícia, dez anos que não a vejo, e mesmo assim ela continua a me trazer problemas.

Examinei os bolsos do padre. No bolso interno do casaco que usava, uma carta. Era da mulher que trabalhara na sacristia, com quem ele estivera junto de uma forma mais íntima enquanto seu deus não estava olhando. Ela dizia que o marido dela estava desconfiado e que ela teria que largar o emprego. E depois disso, nunca mais tiveram contato.

Agora estou aqui, é novamente madrugada e estou novamente na frente de uma porra de tela branca, que me machuca a vista. Tenho que escrever uma droga de conto, tenho que escrever outra droga de artigo, tenho que organizar uma droga de revista, tenho que ler milhares de droga de correspondências que chegam misturadas em lixo postal.

E tudo isso pra quê? Pra desperdiçar a vida passando a tarde numa delegacia de polícia, tentando convencer os caras que você não matou o padre para praticar alguma modalidade de sexo bizarro-profano? Pra olhar pros joelhos e ver que ainda estão arranhados por causa de alguma aventura sexual estúpida em que você se meteu bêbado, na qual nem você nem sua mulher pararam pra pensar um pouco? Pra meter o dedo no nariz tentando tirar aquela meleca que há mais de duas horas te atrapalha o respirar e ver o sangue que começa a jorrar do nariz logo em seguida? Pra constatar que você não fez nada, absolutamente nada daquela lista de trinta itens que você precisava cumprir?

Bah! O pior amargo não é o que entra pela boca, mas sim aquele que acompanha o vômito na saída. Somos mais podres por dentro do que sujos por fora. Somos máquinas de apodrecer comida e espalhar merda nos oceanos. Somos produtos de consumo numa sociedade que nos faz crer que seremos nós que iremos consumir. Somos a lanchonete fast-food espremida entre os dois últimos pentelhos do saco de um gigante adormecido, acordados ocasionalmente pelas ondas de mau-cheiro devidas à flatulência do mesmo. Somos a bosta do locutor esportivo que nos faz crer que tem alguma coisa no esporte que o faça valer a pena. Somos o índice de ações negociado na bolsa, que sobe um centavo cada vez que uma criança chora de fome. Somos a doença venérea, a sífilis que matou Baudelaire. Somos pior que o escarro que usamos para sujar o chão sagrado onde pisamos, e mesmo assim brindamos por estarmos vivos. Somos a última lágrima de Chernobill, somos a corrida armamentista, somos as bombas americanas que rasgam pequenos países, pequenos demais para serem respeitados.

Somos o último gole de bebida tomado por um padre alcoólatra, destruído na vida por uma paixão que não podia existir, a qual não podia deixar-se. Somos os sonhos de nossas ex-mulheres, que nos ligam no meio da noite chorando de medo. Somos os vícios de nossos filhos, que dilaceram a própria carne tentando vingar-se de nós. Somos o sangue já podre demais para se dignar a correr em veias humanas.

Sim, o padre se matou aos poucos, lentamente. Se matou pois sabia do segredo Wildeano : todo homem mata aquilo que ama! Ouviu o sussurrar de um Anjo, dizendo que o beijo é a véspera do escarro. Viu Dante escrever sua comédia. Sentiu na pele o quão rápido pode o toque de uma mulher passar do quente pro frio. Sentiu o vazio que rouba mais espaço do que qualquer coisa. E, principalmente, descobriu que sem mulher, não se vive.


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