A milenar arte de lamber botas escrevendo
Foi mais ou menos na época em que começaram
a matar os medíocres que decidi virar escritor. Eu era
mais um medíocre que
andava por aí a esmo nas ruas, xingava os
subversivos e votava
conforme indicação do chefe da empresa.
Como era muito medíocre não
seria possível disfarçar. Decidi tornar-me
escritor, é lógico, a suposta pompa da profissão serviria para
disfarçar minha mediocridade
justamente expondo-a ao público.
Primeiro me certifiquei do apoio à minha causa. Fui à igreja
aos sábados assegurar às boas velhinhas que compareciam às reuniões
semanais que o apoio delas era necessário para que eu emergisse como o
grande defensor da moralidade. Com um bloco de anotações eu sentava
num banco do centro e anotava todos os itens de roupa e maquiagem das
moças que passavam. Comecei a escrever uma coluna semanal do jornal
(para a qual um primo do chefe me indicou) e, por falta de assunto,
descrevia todo o ropário de uma moça e terminava com um comentário
irônico. Na último palavra, retomava o tom sério e exortava o fim das
roupas indecentes e o fim da decadência da nossa plebe.
Logo choviam cartas de empresários aplaudindo minha crônica.
Principalmente a ironia, era sempre notada por todos. Ela, a ironia,
era o diferencial que me fazia um intelectual. E é bem sabido que é
permitido a qualquer um dizer asneiras quando se é nomeado
intelectual. Assim sendo minha burrice me ajudava. Minha burrice e a
ocasional propaganda camuflada de pessoas que em breve se lançariam na
política para aumentar seus patrimônios.
Mas todo escritor encontra por fim sua consagração. Escritores
mais jovens me bajulavam para tentar conseguir um emprego em algum
canto, e escritores mais velhos me aceitavam como colegas com medo que
eu desconfiasse que a farsa que eu inventara já era há muito utilizada
por eles. Mas enfim tive a idéia do livro e escrevi "A paixão de
Lambescu".
A paixão tinha, nesse caso, o sentido de pathos, sofrimento. E
era um livro de oitocentas páginas em que eu descrevia a emoção épica
e existencial de um homem ao abrir os olhos e se levantar da cama.
Eram oitocentas páginas que contavam um minuto de história, e
demoravam uma vida inteira para ser lida, tão tediosas as descrições e
rebuscados os vocábulos.
Amigos jornalistas logo me apregoaram como o maior escritor
brasileiro e prediziam uma nova onda na literatura inspirada em mim.
Algumas cortesias enviadas a jornalistas e donos de jornal do rio e
são paulo e estava pronta a consagração.
Das oitocentas páginas, pelos menos cem eram gastas na
descrição de uma estante de madeira. Outras quatrocentas eram também
de descrições tolas ou divagações metafísicas de sentido oco. O livro
encerrava uma lição moral de um herói épico, que luta contra a
gravidade para fazer-se, ao final, ficar de pé. Um minuto que
demoraria uma vida para ser lido, se é que alguém conseguiria lê-lo
todo. Eu mesmo, apesar de ter escrito, nunca consegui. Isso porque boa
parte do texto peguei de textos antigos, recortes de jornais e autores
anônimos. Era uma técnica que eu inventara de atribuição aleatória de
significados, baseado na aleatoriedade de significados que o mundo
tinha para mim.
Somente ao final, à última página, eu dedicara maior
seriedade. Terminava com a lição de moral que explicava o fim do
livro: apesar de a casa ter cupins e formigas, que simbolizavam as
pessoas que não conseguiam ficar sempre contentes com tudo, o homem
ficava de pé, e as pernas representavam a igreja e o estado, portanto
somente o homem que confiava no governo e na igreja podia ficar de pé,
o resto eram cupins corroendo tudo.
Vários jornais paroquianos indicaram meu livro. O governo
federal liberou verba para publicar oitenta milhões de exemplares e
distribuí-los para a população analfabeta. A academia me elegeu
presidente antes mesmo de eu virar membro, e me tornei membro de
várias academias locais do país, umas cem, contribuindo com cerca de
mil reais para cada uma.
É claro, havia uns descontentes e carrancudos que tentavam me
difamar, mas isso não era nada que três caras com barras de ferro nas
mãos não pudessem resolver. O tempo passou, a história registrou, e o
medíocre tornou-se estilo, tornando-se por fim lei. Assim lancei as
bases de um novo brasil.
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