Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

A milenar arte de lamber botas escrevendo

Foi mais ou menos na época em que começaram a matar os medíocres que decidi virar escritor. Eu era mais um medíocre que andava por aí a esmo nas ruas, xingava os subversivos e votava conforme indicação do chefe da empresa. Como era muito medíocre não seria possível disfarçar. Decidi tornar-me escritor, é lógico, a suposta pompa da profissão serviria para disfarçar minha mediocridade justamente expondo-a ao público.

Primeiro me certifiquei do apoio à minha causa. Fui à igreja aos sábados assegurar às boas velhinhas que compareciam às reuniões semanais que o apoio delas era necessário para que eu emergisse como o grande defensor da moralidade. Com um bloco de anotações eu sentava num banco do centro e anotava todos os itens de roupa e maquiagem das moças que passavam. Comecei a escrever uma coluna semanal do jornal (para a qual um primo do chefe me indicou) e, por falta de assunto, descrevia todo o ropário de uma moça e terminava com um comentário irônico. Na último palavra, retomava o tom sério e exortava o fim das roupas indecentes e o fim da decadência da nossa plebe.

Logo choviam cartas de empresários aplaudindo minha crônica. Principalmente a ironia, era sempre notada por todos. Ela, a ironia, era o diferencial que me fazia um intelectual. E é bem sabido que é permitido a qualquer um dizer asneiras quando se é nomeado intelectual. Assim sendo minha burrice me ajudava. Minha burrice e a ocasional propaganda camuflada de pessoas que em breve se lançariam na política para aumentar seus patrimônios.

Mas todo escritor encontra por fim sua consagração. Escritores mais jovens me bajulavam para tentar conseguir um emprego em algum canto, e escritores mais velhos me aceitavam como colegas com medo que eu desconfiasse que a farsa que eu inventara já era há muito utilizada por eles. Mas enfim tive a idéia do livro e escrevi "A paixão de Lambescu".

A paixão tinha, nesse caso, o sentido de pathos, sofrimento. E era um livro de oitocentas páginas em que eu descrevia a emoção épica e existencial de um homem ao abrir os olhos e se levantar da cama. Eram oitocentas páginas que contavam um minuto de história, e demoravam uma vida inteira para ser lida, tão tediosas as descrições e rebuscados os vocábulos.

Amigos jornalistas logo me apregoaram como o maior escritor brasileiro e prediziam uma nova onda na literatura inspirada em mim. Algumas cortesias enviadas a jornalistas e donos de jornal do rio e são paulo e estava pronta a consagração.

Das oitocentas páginas, pelos menos cem eram gastas na descrição de uma estante de madeira. Outras quatrocentas eram também de descrições tolas ou divagações metafísicas de sentido oco. O livro encerrava uma lição moral de um herói épico, que luta contra a gravidade para fazer-se, ao final, ficar de pé. Um minuto que demoraria uma vida para ser lido, se é que alguém conseguiria lê-lo todo. Eu mesmo, apesar de ter escrito, nunca consegui. Isso porque boa parte do texto peguei de textos antigos, recortes de jornais e autores anônimos. Era uma técnica que eu inventara de atribuição aleatória de significados, baseado na aleatoriedade de significados que o mundo tinha para mim.

Somente ao final, à última página, eu dedicara maior seriedade. Terminava com a lição de moral que explicava o fim do livro: apesar de a casa ter cupins e formigas, que simbolizavam as pessoas que não conseguiam ficar sempre contentes com tudo, o homem ficava de pé, e as pernas representavam a igreja e o estado, portanto somente o homem que confiava no governo e na igreja podia ficar de pé, o resto eram cupins corroendo tudo.

Vários jornais paroquianos indicaram meu livro. O governo federal liberou verba para publicar oitenta milhões de exemplares e distribuí-los para a população analfabeta. A academia me elegeu presidente antes mesmo de eu virar membro, e me tornei membro de várias academias locais do país, umas cem, contribuindo com cerca de mil reais para cada uma.

É claro, havia uns descontentes e carrancudos que tentavam me difamar, mas isso não era nada que três caras com barras de ferro nas mãos não pudessem resolver. O tempo passou, a história registrou, e o medíocre tornou-se estilo, tornando-se por fim lei. Assim lancei as bases de um novo brasil.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski