Retorna ao início
----->contos do fonjic<-----
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998

Retorno à infância

Pra variar eu tinha sido chutado de novo, pela enésima mulher. Mas o problema começou aí, eu, sujeito acostumado a ser chutado como cão pela rua e, principalmente, a ser chutado pelas mulheres, achava que nada mais ia me abalar e fiz a besteira de arranjar uma mulher que eu realmente gostasse, invés de pegar a primeira da rua.

Ela, é claro, não poderia jamais gostar de mim, senão jamais poderíamos dizer que eu a amava, essa é a lei. A lei universal do amor, tal como foi construída por Shakespeare e Wilde, sintetizemo-la assim: A não-reciprocidade é a base do amor. Ou seja, se queres ser amado, não ame. Se amares, sofrerás.

Eu, é claro, como sempre tive uma intuição infalível (não infálica) com mulheres, tratei de me apaixonar pela mais canalha, conseqüentemente mais bonita, que apareceu. Resultado: Não só fui chutado, como também humilhado, tripudiado, escurraçado e processado.

Então de súbito lá estava de novo eu, morando num pardieiro, um quartinho imundo num beco, sem dinheiro, sem comida, sem bebida e sem a mínima dose de orgulho, dignidade ou esperança. E o pior era ter que levantar, todo dia, para encarar o mundo e saber que teria que continuar indo em frente, mesmo sentindo que todo o peso da culpa e do remorso pairava em meus ombros.

Pensava em cada beijo que não dei, e em como talvez aquele tivesse sido o momento exato em que nossa relação tivesse se abalado. Lembrei do amante que ela arranjou logo antes do fim, e senti a culpa e vergonha de não ter sido homem o suficiente para ela. Lembrei o quanto deixei que ela abusasse dos limites só porque eu a amava demais e achava que perdoar era bonito. Lembrei de cada punhalada sucessiva desferida em meu peito, do dia em que eu via tevê e ela, de súbito, apareceu arrumada na sala e disse apenas "preciso de grana". Lembrei de eu perguntar onde ela ia e ela dizer que eu a estava sufocando, lembrei de descobrir ali que nossa relação já tinha acabado, mas talvez eu fosse covarde demais para encarar. Me arrependia de tudo, de todas as coisas que fizera e de todas que deixara de fazer. Sentia que eu envergonhava a história da humanidade vivendo uma vida tão ridícula. Uma mancha ambulante na história, isso é que eu era.

Hoje era um quinze de março. Um frio quinze de março, se considerarmos que era verão. Acordei com frio e de ressaca. Ressaca de um vinho vagabundo que eu roubara no mercado ontem. Levantei. Vomitei. Caguei. Sentado no chão frio do banheiro comecei a chorar. Quis um banho, mas a água fria me mantinha afastado já há alguns dias. Não tínhamos mais luz. Começando neste quarteirão até o fim da rua estavam todos sem eletricidade. Era o tal do colapso energético chegando, um pouco mais cedo que o previsto, porém. Com a companhia de luz privatizada tínhamos nos tornado economicamente inviáveis.

Mas como eu dizia, depois que terminei de chorar e constatar que eu era biologicamente, socialmente e emocionalmente inviável decidi que era hora de terminar de vez com aquela vida. Ou me matava ou saía da lama, nem que pra isso tivesse que me enterrar mais ainda nela. Tinha uns cinco dias que eu não via ela, mas pela menos cinco meses desde a última vez que a gente transara. Não. Não me envergonho em dizer que eu realmente roubara uma meia usada dela e, escondido, eu a cheirava, todo dia.

Um cara no beco me indicara essa puta, a tal de Tia Ana, e dissera que ela era capaz de fazer verdadeiros milagres pelo cara. Falou de um amigo dele (Tião boca-mole era o apelido que a galerinha tinha dado a ele) que tava virando viado e já andava pelo beco cobrando dois reais o boquete, o preço certinho de uma cerveja no boteco. Os amigos se juntaram, arranjaram uma grana e mandou ele pra essa tal de Tia Ana. Diz que o cara voltou uma beleza, completamente regenerado, e hoje é um dos caras mais machos que mora aí pelas ruas.

Consegui a grana. Não cabe aqui dizer como nem onde, mas o fato é que, ao custo de algumas cicatrizes e um quase infarte de tanto correr, consegui. Peguei a indicação do local, maldita mania das pessoas de não se saber o endereço das coisas, só uma porra dum mapa mental cheio de indicações confusas e contraditórias. Após muito custo cheguei lá. Era uma casa grande e bem conservada, apesar de velha. Toquei o interfone e disse por quem tinha sido recomendado. Uma voz rouca, de mulher que já fumava há pelo menos trinta anos me mandou entrar e esperar na sala. A porta abriu. Entrei. Sentei.

A sala era vermelha, mal iluminada. Revistas de putaria estavam espalhadas pelo local. Era uma espécie de sala de espera. Fiquei quieto, em silêncio, sem mover um fio de cabelo sequer. Mal e mal conseguia respirar. A porra da pulsação parecia um cavalo galopando na garganta. Suava. Ouvi barulho ao longe. De princípio achei que era só o meu coração disparado, mas logo notei que, além disso, ao fundo, podia-se ouvir os gritos, gemidos e súplicas de um homem lá pelos quarenta ou cinqüenta. Meu deus, se ele fosse um pouco mais velho podia ser meu pai. Pior, se fosse um pouco mais novo podia ser eu. Ou, pior ainda, em alguns instantes aquele homem seria eu no lugar dele.

Ante esse pensamento o estômago embrulhou e as pernas começaram a tremer como nunca. Pensei em fugir, sair correndo, nunca mais voltar, virar viado ou o que quer que fosse, mas qualquer coisa menos aquilo. Mas tudo que eu conseguia fazer era ficar parado e suar, suar aos montes. Era medo, pânico. Estava dividido entre o medo de virar viado e o medo de encarar aquela figura mitológica que aos poucos meu cérebro ia transformando Tia Ana. Procurava uma terceira alternativa, uma terceira opção entre aqueles dois caminhos. Acho que foi nessa hora que o orgulho bateu, ou ao menos uma ponta dele que parecia disposta a voltar, e decidi que encarar essa mulher era agora uma questão de honra. Homem nenhum de minha família tivera jamais medo algum de mulher, não seria eu o primeiro. Levantei-me e ajeitei-me num espelho, ainda trêmulo, mas mais pra disfarçar o estado em que eu estava.

Sentei e peguei um revista. Comecei a folhear, mais pra fingir que estava fazendo algo do que para qualquer outra coisa. Anacreonte, Anacreonte, seu velho safado, murmurei para mim mesmo. Trinta miseráveis anos me arrastando pela superfície imunda desse planeta e eis onde eu tinha chegado.

Um homem lá pelos cinqüenta, que não era meu pai, ao menos não aquele que eu conhecia por pai, passou por mim e saiu porta afora, com um ligeiro e constrangido aceno com a cabeça ao me ver. Retribuí o gesto fingindo indiferença.

Passou-se algum tempo até que a balzaquiana Tia Ana apareceu. Lá pelos quarenta e poucos, um metro e sessenta e uns setenta quilos. Apesar da idade, ela não era, até onde sei, minha mãe. Não me machuque por favor, pensei para mim, me envergonhando do pensamento. Vamos lá, ela disse numa voz rouca e convidativa, a mesma voz do interfone, o que me acalmou um pouco e me fez seguí-la.

Fomos prum quarto cheio de correntes, fedendo a mofo, com um monte de roupas de couro e um gaiola pendurada. Ela, que era um pouco ruiva ou loira, não sei ao certo, usava também uma roupa de couro que se apertava no corpo disforme dela.

Eu lembrava, ainda que vagamente, alguma coisa sobre como se fazia aquele treco, de forma que a peguei por trás e já fui chupando o pescoço e passando a mão nos peitos. Peraí rapazinho, ela disse, cadê a grana?

Peguei o bolo de notas e passei a ela os sessenta pila. Ela contou o dinheiro e depois embolou-o de novo e levou até uma caixinha na primeira gaveta da cômoda. Não sei porque acompanhei todo esse ritual com muito interesse. Talvez por hábito. Quando se está há muito tempo sem dinheiro a gente se acostuma a prestar atenção aonde está o dos outros.

Ela voltou e comecei a beijá-la e excitá-la como se há muito tempo eu precisasse daquilo. Bem, há muito tempo eu precisava daquilo. Depois de um tempo ela cravou os dentes em meu pescoço e me jogou pra trás. Caí na cama berrando de dor. Agora, calma aí que nós vamos fazer é do meu jeito, ela disse. Meu primeiro pensamento foi o de levantar e esbofeteá-la até que ela implorasse pra eu parar, mas, lendo em meus olhos o que eu pensava ela disse, nem pense nisso, a não ser que você queira que eu toque a campainha e chame o Vítor pra ensinar umas boas maneiras a você. Em verdade eu não estava nem um pouquinho curioso pra conhecer o tal Vítor, e nem era pra isso que eu tinha pago meus sessenta pilas, cuja falta me doía mais do que uma surra qualquer. Eu pagara pelo serviço, era melhor esperar e jogar o jogo por enquanto.

Ela chegou e começou a esfregar os peitos na minha cara. Foi assim sucessivamente se despindo e esfregando todas suas partes disformes em meu rosto a medida que tirava cada peça de roupa. Começou a me masturbar. Apertava com força, o que me machucava. Depois começou a me arranhar as costas com as unhas e morder meus braços. Quis me algemar, mas isso eu realmente não deixei. Acho que estava a conquistando um pouco, pois agora ela já parecia estar com a guarda um pouco mais baixa.

Tentei meter. Ela disse não, agora lambe. Comecei a lamber a buceta salgada dela e a passear a língua com a experiência de um velho bêbado pescador de azeitonas de martini. A mulher se excitava e mandou: agora bate uma punheta também. E lá estava eu, me matando pra coordenar a língua nela a minha mão em mim. Ela começou a gozar, a berrar e gemer e lambuzar com a buceta encharcada a minha boca. Gozei também, dando um banho de porra em nós dois. Lambe, ela disse, se referindo a porra que escorria pelas costas dela. Lambi. Pedi para ir ao banheiro, e fui me limpar.

Olhei no espelho. Tinha algo ali que eu começava a reconhecer. Um brilho nos olhos. Um fogo de fúria, de ódio e tesão. Queira ou não, mais por ódio que sanidade, eu nascia de novo ali, naquele banheiro fedendo a porra e cheio de urina no chão. Olhei mais fundo o espelho e pude ver, a ovelha vestia a pele de lobo novamente.

Saí do banheiro com as idéias a mil na cabeça, talvez já sabendo o que iria em breve fazer. Agora se ajoelha e põe essa venda, ela ordenou. Estava parada na minha frente, com ar superior, uma barra de ferro numa mão e na outra a venda, estendida para mim. Olhei a venda. Olhei o ferro. Com um punho cerrado soquei-lhe o rosto, com força suficiente para fazê-la apagar. Ela caiu e, tonteada, começou a rastejar pra cama, pra campainha. Pulei em cima dela. Esmagando-a contra a cama. Imobilizei-a com uma chave de braço, deixando a cabeça enterrada no travesseiro, de forma a sufocá-la e abafar os gritos. Com a outra mão arranquei as roupas de couro e estuprei-a, bem ali, na mesma cama onde um instante antes nós estávamos.

Nesse instante, saciado, soltei-a. Ela, tonta, aproveitando o descuido estendeu a mão, tocando a campainha. Aquilo pareceu me despertar. Um neon Vérico apareceu na minha cara dizendo em letras garrafais: FODEU!!! Agora não havia mais tempo pra pensar, só pra agir. Soquei-a novamente, bem no nariz e apagando-a dessa vez. Pulei no chão e peguei a barra de ferro, bem a tempo em que entrava o tal Vítor, com seus dois metros e cem quilos de massa muscular. É como dizem, quanto maior o inimigo maior a queda. Enterrei-lhe o ferro no meio das pernas, acertando em cheio o saco. Ele emitiu um ruído grotesco, sobre-humano, e ficou ali travado, sofrendo, prendendo a barra no meio das pernas tal era a força com que se contraíam seus músculos.

Puxei com força a barra, desprendendo-a do saco do monstro. "Aquele que retirar esta barra do saco se tornará o novo rei de toda a Grã-Putaria". Ergui a barra alto e desferi um golpe contra o rosto da criatura, que tombou ao chão, de quatro. Ergui novamente, desferindo outro golpe. E outro. E outro. E mais outro, até que percebi que o monstro não mais se movia em sua poça de sangue.

Fui até a cômoda. Peguei a caixa de dinheiro. Devia ter uns duzentos, trezentos pilas ali dentro. Todos no quarto estavam inertes ainda. Vasculhei um pouco mais, achando um revólver. Olhei-os novamente. Talvez eu devesse concluir o serviço ali, terminado pra sempre com as dores deles. Olhei novamente o revólver e guardei-o em meu bolso. Não adianta, a bondade sempre fora meu forte, eu os deixaria viver. Ao menos a mulher, pois quanto ao Sr. Poça-de-Sangue, inerte no canto, provavelmente já não havia mais nada que médico algum pudesse fazer para salvá-lo.

Peguei um lenço e tratei, por pura paranóia, de sair apagando todas minhas digitais que pudessem estar pela casa. Paranóia, afinal a polícia não daria nem atenção para o caso.

Saí da casa e, assim que dobrei a esquina, disparei pela rua de volta pra casa, cuidando para não deixar cair o dinheiro, nem o pano, nem a arma. Movimento idiota, pois só o que fez foi atrair atenção.

Mais por sorte que sabedoria, são e salvo cheguei em casa. Olhei o dinheiro. Olhei o revólver. Eu estava curado. Essa tal de Tia Ana era boa mesmo. Agora eu era eu novamente. Eu me sentia vivo e com vontade de viver outra vez. E ainda tinha ali tudo o que eu precisava pra recomeçar minha vida.

É... até que não fora nada mal.


----------x----------

Para ler mais deste autor visite também:
http://uretrite.blogspot.com/
http://br.groups.yahoo.com/group/fonjic/

Clique aqui para cadastrar-se e receber contos de fonjic por email
Receba contos de Fonjic por email

Consulte
Spectro Editora
para ler sobre Charles Bukowski