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Brilhantismo opaco

Uma certeza terrível e remota pairava numa zona cinzenta dos pensamentos. Não eram pensamentos quaisquer nem fúteis, era algo fugidio, como um aroma de buceta ou um som de suspiro, algo suave como uma memória de infância.

Eu conhecera certa vez um escritor que me impressionara. Não por suas idéias, ou contos ou pornografia de sua obra, muito menos pelo estilo de escrita. Ele me impressionara pela total falta de impressão que sua personalidade causava.

Não era magro nem baixo, de fato, nem gordo nem alto, mas havia alguma coisa especial nele que fazia com que simplesmente sumisse. Se houvesse duas pessoas com ele numa sala e ele dissesse algo, as duas se olhariam em resposta, para só depois de desfeito o mal entendido, repararem na presença dele.

Não recordo se o que dele li gostei ou desgostei. Me lembro de ter lido quase tudo que ele escreveu, mas infelizmente nada me recordo. E foi um dia, ao pegar uma foto, que me dei conta disso tudo.

A foto estava num bolo de álbuns e tinha foto de tudo, desde a comemoração da morte de americanos em 11/9 de 2001, até de tranças na barba. Uma delas mostrava uma reunião festiva de escritores, que acabou em bebedeira e amnésia coletiva de quase todos, ou, pelo menos, daqueles que permaneceram até o fim, o que fez com que muitas das resoluções ali tiradas nunca tenham chegado a serem postas no papel, ou sequer lembradas. Uma mancha me chamou a atenção e só depois de muito lavar com água e sabonete é que notei que a mancha não era mancha, era ele.

O bom leitor ou boa leitora me desculpe se não o nomeio, não é por motivos éticos nem para preservar sua intimidade, senão pelo fato de que realmente não lembro. Nem sequer a primeira letra do nome. O fato é que ele estava lá, embora eu nunca houvesse sequer me dado conta.

Comecei a verificar todas as fotos antigas que eu tinha. Novamente a mancha, novamente ele. Em fotos de passeata, novamente o achei. Numa capa velha do Pasquim, uma foto tirada de uma multidão e, coincidentalmente, lá estava ele. Aquilo começava a parecer literatura fantástica barata, e foi quando me dirigi novamente ao meu quarto que o terror me tomou por completo. Os quadros de buceta que então me adornavam a parede, feitos sob encomenda a um obscuro pintor local, traziam também em determinados pontos a mancha, que posterior análise me levou a descoberta de que eram também, reproduções do rosto dele, exceto uma mancha numa virilha feminina que era realmente apenas uma mancha numa virilha feminina.

Foi com ainda maior espanto que, ao fuçar numas fotos de moleque, descobri que ele morava no mesmo bairro que eu e até aparecia em algumas fotos tiradas na festa junina. Não que o fato dele ser meu vizinho seja de todo espantoso, o que me espantava era a total falta de lembrança dele.

Foi quando percebi isso que me tornei fã integral dele. Embora não consiga lhe lembrar o nome, nem tenha recomendado alguma vez sua leitura para algum colega, fato que se deriva apenas do outro fato que é a quase completa falta de memória sobre ele.

Ainda assim, fica aquele sentimento de quase memória, de lembrança interrompida, de estar quase lá e então tudo se esvair. Por sorte consigo reconhecê-lo em fotos ou o seu nome quando em algum livro. Já comprei vários deles. Em verdade, de alguns tenho até várias cópias, pois ao descobrir um livro dele nunca consigo saber se o tenho ou não, mesmo que já tenha lido várias vezes aquela mesma obra. Essa talvez, a qualidade fundamental e única que ele conserva: por mais que se leia, permanece sempre o prazer de ler algo inédito, de lê-lo pela primeira vez. Mas ainda preferia meus quadros de buceta quando não tinham a cara dele...


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