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Um dia

Balas e camisinhas. Matar ou transar?

Até preferia transar, mas a crise chegou. A camisinha custa o triplo de uma bala, portanto a sociedade prefere que você termine com uma vida do que a proteja. Proteger uma vida é igual a matar três...mesmo valor, mesmo preço.

Concordou comigo o elefante que me acompanhava em meu quarto de subúrbio. Toby eu o batizei. As paredes tremiam e se mexiam, gemendo seus lamentos de dores e angústias para mim. Estava frio, muito frio, era inverno. Sobre a cama as lembranças despedaçadas me impediam de deitar, estavam espalhadas em todo canto e eu podia me cortar. Cacos de vidro de mim.

Meu coração estava rachado, perdido, partido. Chegou Maria Elisa, ou seria Marisa?. Ís, isa, áisa, tanto faz, são todas e mesma, e são todas nenhuma. Isa foi, também, uma bela conchinha que achei na praia e trouxe pra casa. Começava a lamber as feridas, tentando consertar o coração quando Marisa chegou. Duas flores brincando, à beira do muro, brincando, brincando, brigando, de repente. Fui abocanhado, destroçado, víçeras espalhadas por toda a casa, sangrentas sangrando em tudo, meu sangue. Por isso hoje o mundo é vermelho, exceto quando está preto e branco, é sempre vermelho. Meu coração, que eu tentava recompor, foi de vez rebentado, moído, e espalhado como cinzas aos quatro ventos, desde o Himalaia até o Rio Ganges.

DOR! Retiro depressa a mão que eu apoiara sobre a cama...cortei-a num dos cacos. Os gorilas riem de mim, procuro ignorar...com um olhar ameaço as hienas, que desistem de começar a rir.

Checo a arma...tudo pronto. Balas, cartucho, arma. O caminho da salvação, afinal deus é brasileiro. E jesus também, e toda aquela cambada de santo puxa-saco chupador de pau! Um anjo para ao meu lado, pousando a mão suave na minha cabeça, acariciando-a e pedindo-me calma. ARGH! Nojo, nojo, mil vezes nojo! Dou um soco direto na criatura repugnante que tentava me seduzir e ela desaparece no ar, que nem fumaça. Esfrego a cabeça tentando limpar a imundície do toque daquela criatura andrógina, mente pervertida guiada por deus, sofrendo por não poder cair em tentação.

Maria Elisa chegou e eu não a amava. Quando ela partiu passei a ama-la. Isa, Marisa, Ana, onde está Patrícia? Procurava uma esposa, só encontrei amantes! Procurava um lar, achei um caminho...as cavernas sempre tem ursos escondidos no fim das contas. O urso ao meu lado concorda, onde foi Toby? Segundo Raul, melhor uma esposa invés de uma amante, mas Holywood é o cigarro do sucesso e eu parei de fumar. Por isso o mundo hoje é recoberto por essa névoa, essa bruma vermelha e opaca que distorce tudo, vermelho do sangue, vermelho do vinho, que parei de beber e deixei o copo pela metade. Por isso o mundo hoje é coberto de copos virados sobre os quais eu tenho que pisar para andar.

Amantes me levaram a loucura. Sistema ideal para as mulheres, liberdade sem compromisso, pois elas detém a chave do conhecimento nas relações, elas manipulam à vontade os homens, podendo obter o que querem e quando querem. Ando pelas ruas com a arma oculta, está escuro e as pessoas estão todas cabisbaixas, mortas, apenas andando sem expressão, concordando com o que eu digo. Para os homens, o sistema antigo lhes era ideal, pois nele eles podiam também decidir e até mandavam, mas este, este era por demais ruim para as mulheres, que murchavam e morriam por dentro por não ter a liberdade. Os homens ou não queriam a liberdade ou a obtinham nas casas noturnas.

Mas é claro, me lembra o tigre que passeia entre minhas pernas, quase me derrubando. Há aqueles que muito bem vivem dentro da sociedade e das relações livres. Pulam entre amantes, dedicando a cada uma o mínimo de tempo possível, de forma a deixar-lhes a saudade e prolongar o amor por elas sentido. E enquanto este amor dura, o esperto motorista de táxi norueguês, que mora na Cidade do Cabo, aproveita para pedir-lhes dinheiro, comida e tudo mais que puder sugar.

A vida é feliz, quase cor-de-rosa às vezes, amaciando o vermelho. Afinal eu tenho uma arma e muitos amigos ao meu redor. Toby com sua tromba a balançar concorda, enquanto Dona Aranha me abana tecendo uma rede para mais tarde eu me deitar.

Uma bola de energia cintilante aparece, piscando num quase púrpura, me chamando para entrar. E é pra lá que eu me dirijo quando o guarda aparece, me dizendo que é hora de ir deitar. "A bola, a bola" eu digo, mas o guarda é feio e mau e começa a emitir guinchos que eu não mais posso escutar. Assim eu pego a arma, apreciando a surpresa dos olhos, e começo a atirar. Dois tiros no guarda, na cabeça e no pulmão, que agoniado balbucia minha ordem de prisão.

Na rua saem correndo, milhares de formigas, a fugir e a gritar. Mas minha arma é mais potente, e com tiros bem certeiros eu começo a alvejar. Minhas balas acabando, os cartuchos vou trocando pra poder continuar. Pelas ruas vou andando, gente morta vou matando pra poder me libertar. Nas minhas costas um ciclone, um tornado de imprensa a querer me noticiar. Eu me viro para a morte e atiro com carinho por querer me suicidar. Mas a morte é minha amiga, dá-me um beijo na barriga e me diz pra não parar. Com a mão eu faço figa, pra que a arma então prossiga e eu não pare de matar.

Acordo mais tarde. Muito mais tarde. Estou numa cela de hospital e tudo agora é preto e branco. Meus bichos, meus amigos, não estão aqui e acho que não mais poderão me visitar. O mundo está estranho, a cabeça zumbe, e meu corpo perfurado por tiros muito dói. Trinta mortes, nada mal para uma só pessoa. Trinta mortes, trinta balas, dez camisinhas que deixei de comprar. Mulheres que desejo não mais ver, Marisa, Maria Elisa, doce amada final, será que também a matei? Todos os bichos se foram e, na assepsia preto-e-branco de meu quarto, sinto a falta de meus cacos de vidro a me espetar.

Arranco a mangueira do soro, tenho que ser rápido agora. "Sempre quis que vocês admirassem meu jejum... não pude encontrar o alimento que me agrada" disse Kafka antes de morrer de fome. A imagem minha, fraco, amarrando a mangueira no lustre, sem brilho, é agora não um preto-e-branco qualquer, mas um acinzentado, escuro, no qual mal se pode ver. Me penduro na forca e começo de novo a sentir-me bem. Meu cachorro vem lamber-me os pés pendurados no ar, numa saudação de despedida, e todos os animais e elementais da natureza vem prestar-me seu último adeus. O grito humano da selvagem enfermeira é meu último som ouvido antes de, enfim, a imagem apagar.


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