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A língua da fome

A fome. A fome costuma, constantemente, a me ser tema do mais alto interesse. E não é à toa, é claro, afinal sou grande apreciador da fome, não só apreciador como também praticante, de forma que quase reclamo para mim o título de connaisseur da arte da fome.

Ah... Kafka, é claro, Kafka e seu maldito magnífico artista da fome ilustram bem melhor aquilo que digo, mas não é por isso, e sim pela minha incansável compulsão etílica, que sou lançado as raias da famelitude.

Ontem meu jantar foi vinho. Acordei de ressaca ao meio dia, o que me impediu de almoçar. Agora me pego de repente, em plena quatro horas da tarde, bolando um jeito de assassinar o canalha que vem a ser nosso presidente e tentando esquecer a fome.

FOME.

A fome me dá delírios lingüísticos. Cantei Tintarella de Luna. Mas cantei só a parte igual ao título porque é a única que sei, uma vez que não falo a língua de Petrarca e Boccaccio. Cantei I'm naturely born bad, de forma lenta, arrastada, monótona, repetitiva como a fome. Por fim a fome se apoderou de mim e comecei a inventar formas excêntricas de se fazer frases falando de comida em alemão, como das gestern gekaufte kochende Essen, por exemplo. Tudo no campo de desejo, no imáginário, porém causado pela fome, que é física.

Ah, claro. A falta de mulher. Quando digo que não como nada há muito tempo isso se refere a bem mais do que mera comida, com certeza. Meu estômago dói, e como única forma de distrair a mente busco me masturbar. Por quinze minutos a fome passa, mas depois volta.

FOME.

Pego o dicionário. Usei uma palavra francesa que parecia estar escrito errada. Estava mesmo, mas não precisa voltar a le-la que agora já arrumei. Pensei em deixar errado, mas preocupado com o efeito didático de uma obra resolvi escrevê-la como prescrevem os francofónos.

FOME.

Olho as paredes. Não adianta. Olhar as paredes não faz a fome sumir. Decido abrir aleatoriamente uma enciclopédia, talvez ache lá um composto químico, nome de filho da puta ou outra coisa qualquer que me interesse. Pego o volume oito, que vai de het até kor. Fico imaginando o que seja um het ou um kor, fico imaginando mas nem a sim a desgraçada da fome para de castigar meu estômago. O devaneio é, também, filho da fome. Leseira.

Investimento foi a palavra que apareceu, me recuso a le-la, pois me lembra de filhos da puta demais. Investigações religiosas? Tô fora também, acho que hoje não é meu dia. Iodirita, gostei. Leio o curto trecho de texto ao lado e descubro que esse belo mineral (que vale ser nome para minha filha que nunca terei) existe somente no Congo, México, Chile e Rússia. Por enquanto, é claro, uma vez que a tendência é os países centrais irem lá para extrair e usurpar esse material do belo povo de seu país de origem.

FOME.

Olho novamente e acho uma frase que me agrada: in vino veritas. Nada poderia ser mais verdadeiro, o que me lembra da jarra de vinho que tenho na geladeira (a única coisa na geladeira, de fato). Outra frase invita Minerva usada por Horácio para falar daqueles que, escrevendo sem talento, iam assim contra a bela deusa Minerva. Aceito como uma indireta do destino, de forma que fecho o livro e me decido a voltar a escrever sério, e não devanear sobre palavras e frases enciclopédicas.

FOME.

A comida cozinhante comprada ontem. Achei finalmente uma tradução para a frase (FOME) dos meus delírios estômaco-lingüísticos, mas me pergunto se alguém será capaz de entender aquilo que eu quis dizer com isso.

FOME FOME FOME FOME.

Tenho que ler, escrever, ou comer alguma coisa. Comer um conto, quem sabe. Não fará falta mesmo, um conto a mais um conto a menos não faz diferença na obra de um escritor.

Procure me deitar, relaxar, olhar o vazio um pouco. Sinto calor e frio ao mesmo tempo. Coisa maravilhosa é essa tal de fome. Todos os músculos contraem-se, espasmos, raiva. A agonia da fome me invade.

MULHER.

Isso, procure pensar em mulher na vã tentativa de conseguir me concentrar em alguma coisa. Sinto já a dificuldade de escrever.

FOME.

FOME.

Falava de devaneios lingüísticos, não? Pois não há melhor devaneio lingüístico do que aquele feito entre as pernas de uma mulher. Deixar a língua devanear livremente, pelos campos belos e suculentos da flora vaginal. O gemido que escapa não é gemido, mas sim poesia sonora, musical. A mais bela poesia sonora para acompanhar um breve momento de poesia lingüística. Ou lingual? Ou linguélica? Alguém sabe com é língua em latim?

BUCETA.

Imagino agora aquela coisa mística e rosada pairando na minha frente. A ...!?! São ao todo 432 dias sem mulher, sem comer uma única mulher e o pior, sem lamber uma única buceta. Não, não vou me masturbar de novo, já estou fisicamente esgotado, não posso.

TONTURA FOME FALTA DE AR FOME TONTURA

O estômago dói nervosamente, e eu sei que mais cedo ou mais tarde não vou resistir e vou sair novamente pra rua em busca de comida. Comida e mulher, porque sem os dois é impossível viver. Lixo. Catar lixo na vizinhança a procura de qualquer coisa que eu possa comer, ou então esperar novamente às cinco horas e ir pra porta de escola pedir comida pras crianças que saem cheias de pipocas e balinhas perdidas nas mochilinhas. Bater papo com as mamães também, embora uma delas já tenha chamado a polícia uma vez achando que se tratava de assédio sexual ou que eu era ou maluco ou tarado, talvez os dois. Ora, não se pode mais acariciar os peitos de uma mulher em público? Nem se perguntar sobre o surgimento de características sexuais secundárias em sua filhinha?

É... o mundo está perdido mesmo...

Fome...

A fome afrouxa um pouco seus chicotes psíquicos em meu cérebro, mas sei que daqui a cinco minutos voltará. É melhor eu ir agora, melhor ir embora. É cinco horas e logo logo as escolas estarão cheias de mamães fofinhas esperando suas filhinhas que saem da aula carregando mochilinhas cheias de docinhos e comidinhas fofinhas.

Devo ir, já pode desligar a câmera agora, obrigado.


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