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Surpresa de inverno

Entrei na cozinha e levei um susto. Estirado no chão lá estava eu... morto. Os pulsos cortados, a faca ainda caída reluzindo na luz... eu tinha me matado, e tão distraído eu estava, que até esquecera disso e saíra para dar uma volta por um momento.

Ah sim... tão distraído e sofredor eu estava, tão calmo e melancólico, que após me matar até me esqueci de meu corpo, saí pra dar uma volta e, bêbado, voltei sem lembrar de nada pro meu corpo, tentando me achar. Meia hora já que o corpo esfriava e o sangue coagulava no chão solitário. Olhava pro sangue e olhava pro corpo. Os olhos fechados como a sonhar, a pele pálida e uma expressão de tristeza...tristeza e nada mais. Numa poça negra o sangue invadia o chão da cozinha, coagulado, pastoso, numa poça sobre a qual o corpo se estirava, formando um estranho angulo com a cabeça.

Triste demais pra se ver, quis sair, me virar dali e ir embora como se nada tivesse ocorrido. Ir embora chorar e depois esquecer tudo, deixar tudo apenas como uma névoa de memória, a ser negada durante a ressaca do dia seguinte. Mas não podia. Não podia, nem queria, nem conseguia. Pois ali, em algum lugar, estava eu. Naquele chão, naquele corpo, em algum lugar eu devia estar, mas o corpo, sem vida, olhava-me torto com seus olhos fechados e eu vi que no corpo eu não podia estar. O copo de uísque caiu de minha mão. Eu não podia mais segurá-la e o vi lentamente me atravessando, caindo, e se espatifando no chão. Eu não era mais sólido o suficiente para segurá-lo.

Olhei para o sangue. Um último restinho, um último filete ainda escorria lenta e preguiçosamente para o chão. Era ali que eu estava. No sangue, e não no corpo, eu estava agora. E lentamente eu escorria pra fora de meu próprio corpo, sem entender nem saber direito porque, por que era eu expulso de meu próprio corpo. Só sabia que tinha alguma coisa a ver com erros, facas, medo, desespero e conseqüências. Facas e pulsos sempre se atraem.

Olhei aquilo e vi que não mais tangível eu estava, tentava tocar nas coisas mas as atravessava. Olhei de novo o corpo duro e frio no chão, sem vida. Olhei o sangue coagulado que as formigas vinham agora devorar. Olhei a face de tristeza profunda enraizada no rosto, quis chorar e olhar pra trás, mas não podia mais. Era tarde demais para olhar para trás e o medo do que estaria lá era também muito grande. Isso é tudo? - eu perguntei. E olhei uma última vez a cena sinistra e fria, que as lâmpadas no teto se encarregavam de tornar vazia e ofuscante. Acabou? Assim sem mais nem menos acabou? Ouvi uma última vez o barulho dos carros que passavam na rua e do mundo que continuava a girar. De novo eu perguntei-me: acabou?

E então acabou.


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