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Gripe Espanhola, Bagre Necrófilo e outras alegrias do viver

Desde que minha enésima mulher me chutara, comecei a colecionar recortes de jornal. Desde o trivial ao profano, tudo era de interesse.

O segundo passo foi a hipocondria. Passei a colecionar recortes apenas médicos, e uma vez que agora eu me especializava numa área, abria o leque de fontes comprando o máximo de jornais possíveis do mundo todo. Meu preferido era o relato de um caso coletado durante a gripe espanhola, famosa pandemia que matou mais de vinte milhões em 1918.

Pedrinho morava no Rio. Rio de Janeiro, onde se podia conversar com uma pessoa normalmente a caminho do trabalho, despedir-se dela na esquina para, em seguida, vê-la dar dez passos e cair no chão fulminada pela gripe. Todo mundo podia estar contaminado, fato que só se repetiu com a gripe asiática de 1957. Mas essas gripes foram diferentes, se sabe. Em geral, as doenças são um mal hábito no qual os pobres insistem em recorrer. Os ricos, no entanto, preferem hospitais e curas rápidas, que só o dinheiro pode comprar. Não na gripe espanhola. A grande beleza das grandes doenças é que quanto mais forte a doença, mais democrática ela se torna, espalhando-se assim nas várias camadas sociais da população. E se alguém lembra ainda dessas gripes, é porque houve muito banqueiro, industrial, e outros grandes enrabadores do povo, que então morreram.

Mas voltemos a Pedrinho. Pedrinho sentia dores fortes em seus braços e pernas, falta de ar, beirava a morte. Sua mulher, Zuleika, disse que não chegava perto dele enquanto ele estivesse doente, e se mandou de casa para não ser contaminada. Não passou dois dias até Pedrinho descobrir que ela freqüentava a casa do vizinho, onde trepavam o dia inteiro.

Pobre, doente, corno. Pedrinho pensou em se matar. Ia se matar, quando descobriu, num jornal, uma noticia de uma planta da amazônia que fazia verdadeiros milagres, curava tudo, inclusive a gripe. Pedrinho arrumou a mala dele e do filho de doze anos e disse, meu filho, estamos partindo, vamos em busca da minha cura.

Acontece que no segundo dia de viagem, Pedrinho morreu. Abandonado numa cidadezinha, João, filho de Pedrinho, não sabia o que fazer. Caminhou até chegar numa casa velha, de onde saía boa música. João adorava música, como seu pai. Entrou. Era um bordel decadente, e logo foi adotado pelas moças que ali dirigiam o negócio.

Três anos depois, João já não era mais virgem e decidiu finalmente seguir o sonho de seu pai. Tinha quinze anos. Iria continuar a viagem e achar a planta milagrosa que seu pai morrera sem ver. Era algo simbólico.

Com um dinheiro que elas lhe deram por "serviços prestados", ele embarcou em trem, mula, barco, todo o tipo de transporte, para levar adiante seu sonho. Estava quase chegando lá, quando numa noite, o barco em que viajava num rio, começou a encher de água e afundar. João deixou pra trás os pertences e as pessoas que berravam por socorro, e nadou o máximo que podia para chegar a borda. De lá tentaria bolar um jeito de salvar os outros.

Nadou. Nadou. Nadou. E estava quase chegando, quando sentiu algo estranho roçar sua perna, para em seguida morder firme no seu calcanhar. Não mordia para devorar, mas sim para, com seus dentes serrilhados, prender a vítima. João tentou lutar com o bicho e pedir socorro, mas por fim acabou vencido e foi arrastado pelo peixe até o fundo do rio. Acontece, e João não sabia, que aquele era o famoso "Bagre Necrófilo da Amazônia", um baita peixão de um metro e meio, cujo modo de matar era o mais cruel: arrastava sua vítima pro fundo do rio, até que ela sucumbisse por afogamento, para então tornar ereta sua colossal jeba e, assim, violar o cadáver.

E por muitos anos, até que seu corpo apodrecesse por completo, João recebeu diariamente a visita do peixe que o enrabava.

E foi por isso, por causa do relato desse simples caso de gripe, que me tornei consciente dos benefícios do bem-estar e da saúde. E desde então nunca mais andei descalço e cerveja só tomo quente e nunca, mas, nunca, nunca, nunca mesmo, irei, dia algum, nadar na Amazônia.


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