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O dia a dia num dia de dia

Caiu de novo, o velho. Olho novamente tenso pro relógio na rua, cinco e dez. Os carros passam impiedosos, ignorando a condição precária do velho. E eu aqui, parado, embaixo do relógio, indeciso entre ajudar o velho e continuar esperando minha filha.

Minha filha... raramente a via, a não ser que ela precisasse de dinheiro. Morava com a mãe, o que queria dizer que não devia ir muito com minha cara. Bem, ela não tinha sido planejada mesmo. Ou tinha, não me lembro. Pra que diabos resolvi por filho no mundo?

O velho se levanta de novo, tentando mais uma vez completar a travessia da rua. O joelho esquerdo sangrava. Algumas pessoas passavam e olhavam com curiosidade, ou horrorizadas com a situação, mas ninguém fazia nada. Minha filha sempre se atrasava, e se eu me atrasasse ela não esperava sequer um minuto. Pára, olha e vai embora. Se eu sair daqui, é quase certo que a maldita lei das coincidências fará com que ela chegue, não me veja e vá. Odeio ela às vezes, por ser tão arrogante, tão durona igual à mãe. Ou talvez eu que não passasse de um velho chorão, sensível demais às pequenas maldades das mulheres.

Estou tenso. Está quente. Eu mataria por um uísque gelado, ou uma cerveja. E o velho só me faz aumentar a tensão, preso no trânsito como uma daquelas moscas presas num vidro de conserva à espera da morte, tudo para a diversão de um garotinho sádico. Se deus existisse, certamente estaria rindo aos montes com o drama do velho.

Praguejei alto. Olhei ao redor, nada de Patrícia. Sim, Patrícia, a pirralha tinha o mesmo da mãe, como que para me lembrar sempre da besteira que eu fizera. Cinco e quinze, ela estava quinze minutos atrasada, eu tinha que fazer algo por aquele maldito velho.

Abandonei meu posto de espera e corri até a rua para ajudar. Ele estava mais uma vez caído. Chamei, chamei, até que ele se virou pro meu lado e viu, com cara de espanto, o sujeito de barba e cabelo grisalhos, parado em pé ao seu lado. Segurei firme no pulso dele e ajudei-o a levantar-se. Os carros, por incrível que pareça, continuavam a passar por nós com naturalidade, como se fossemos um poste ou canteiro.

Comecei a praguejar e encarar furiosamente os motoristas. Tinha que segurar o velho em pé com força porque ele, invés de segurar-me, agarrava forte com as duas mãos uma garrafa de pinga. Olhei pra trás e vi Patrícia, minha filha, chegando no local de encontro.

Bosta! Eu sabia que isso ia acontecer. Não podia perder tempo. Me joguei com o velho na frente de um chevette azul que, felizmente freiou, com visível má vontade, embora desse mostras de parecer entender a situação. Patrícia olhou ao redor, berrei para que ela me visse. Nada. Virou de costas e começou a ir embora. Agarrei o velho contra meu corpo, derramando pinga na camisa preta suada que eu usava, e levei-o até o outro lado da rua, meio caminha meio arrastando as pernas do pobre homem.

Deixei-o escorado num poste e corri de volta, costurando no meio dos carros. Droga.

Alcancei Patrícia uns cem metros adiante. Chamei:

--- Patrícia! Patrícia!

Nada. Toquei no ombro dela e falei:

--- Patrícia, oi, sou eu.

--- Ah, pai! Já ia embora! Bem que a mãe diz, o senhor é um irresponsável mesmo!

--- É... desculpa filha tá.

Sabia que explicar a situação não iria adiantar e servir para deixá-la mais irritada. Ela e a mãe dela eram assim. Convivi cinco anos com aquelas duas mulheres, tempo o suficiente para saber algo.

--- Você tá fedendo a cachaça! Tá bêbado é?

--- Não, amorzinho, derrubaram em mim na rua...

--- Ah sim, de certo foi um hidrante de cachaça que o bombeiro abriu do seu lado e espirrou em você.

Conhecia aquele tom de ironia. Sabia que enquanto não a acalmasse não seria possível conversar.

--- Escuta, você não quer ir naquela lanchonete que tanto gosta? Eu pago.

--- Tá desconversando.

--- Já pedi desculpas por chegar atrasado, agora que tal sairmos do meio da rua.

Ela viu que estava sendo rude e acabou cedendo, sem perder a pose, é claro. Já conhecia essa cena de cor e parecia tê-la visto mil vezes. Fomos pro bar.

Fiquei pensando no velho. Fiquei pensando na grande droga que estava se transformando a humanidade. Fiquei pensando na decadência social e cultural do século vinte, pior ainda no vinte e um, causada pelo esgotamento do modelo capitalista de economia. Tudo devia ser novo agora, não havia mais espaço para velhos como eu.

--- Pai! Pai, você está prestando atenção no que eu digo?

Estávamos tomando sorvete de alguma coisa, sentados na tal lanchonete. Ela falava de alguma viagem do colégio que pretendia fazer. Formatura, eu acho.

--- Sim, meu bem, tô ouvindo. Acabei de concordar com o que você disse.

--- Você não concordou. Só balançou a cabeça olhando pro vazio.

--- Pois é, filha, quando eu balanço a cabeça assim tô dizendo que sim, que concordo. Você sabe que eu te adoro.

--- Tá bom, então você vai mesmo pagar a viagem pro Rio no fim do ano?

--- Claro, querida.

Engraçado. Ela era mesmo muito parecida com a mãe dela. Queria saber onde estavam os cinqüenta por cento de genes meus que havia nela. Dezessete anos já, ela estava uma flor. Será que trepava tão bem quanto a mãe? Será que os rapazes do colégio a respeitavam, ao menos, ou era só mais uma que entrava na lista? Eu não devia estar pensando nessas coisas, mas no fundo acabavam me preocupando. Pelo decote nos seios e a saia dava pra ver que ela não era nenhum pouco ingênua. Talvez fosse louca demais e muito agoniada com o mundo ao redor, como eu era na época, talvez por isso fosse assim tão atrevida, talvez aí estivessem meus cinqüenta por cento.

--- Carlos! Você não está prestando atenção!

Ela estava ficando irritada. Sempre me chamava pelo meu nome quando estava irritada comigo. Talvez estivesse mais acostumada a me chamar assim do que chamar de pai, mas chamava de pai quando eu estava junto porque sabia que eu gostava.

--- Tô sim, Patrícia, só tava pensando na pergunta que você fez antes de responder... não quer que eu tenha todas as respostas assim prontas, né?

--- Bem, e então?

--- Bom, quando você diz que precisa de roupa pra viagem, eu concordo, mas quanto aos vestidos, não sei. Veja bem, o Rio não é nenhum paraíso tropical, e se você sair toda arrumada na rua vai com certeza ser assaltada.

Ela fez uma cara de raiva, igualzinha quando era criança e não conseguia algo que queria.

--- Eu acho que devemos fazer assim. Vamos ver, tá no meio do ano agora... quando você for viajar, e souber melhor nos lugares que irão quando estiver lá, a gente sai e compra umas roupas, que tal? Provavelmente um vestido e umas roupas comuns, pra usar de dia.

--- Pode ser.

Ela abriu um daqueles sorrisos de criança que eu nem lembrava mais que ela tinha. Pela primeira vez notei que ela usava aparelho nos dentes, mas não comentei nada porque podia ser que ela já tivesse me dito em alguma outra ocasião. Conversamos por mais meia hora, até que ela disse que tinha que ir indo. Eu também tinha. De fato, já estava atrasado. Tinha combinado com o pessoal de encontrá-los à seis. Eles queriam criar um time de futebol pra jogar às sextas, e eu odiava futebol do fundo de todo meu ser, mas acabei concordando. Não só companhia, mas porque qualquer coisa era melhor do que entrar embaixo da pia da sua cozinha numa sexta à noite e estourar a cabeça com um tiro de revólver. Me despedi de Patrícia com um beijo no rosto e um abraço, que fez valer a pena ter acordado vivo hoje. Fui pensando na história do futebol, tentando me convencer a aceitar a idéia. Não podia ser tão ruim assim, afinal jogar futebol era bem menos pior do que assisti-lo pela tevê. Eles até disseram que me deixavam escolher o nome do time, e eu já tinha um: EEC - Eutanásia Esporte Clube. Não era tão mal assim. Ainda preferia Time da Cachaça, mas esse, infelizmente, já existia, duns caras que moravam lá no continente. Pode ser, então, que eu seja um covarde, mas entre o tiro na cabeça e o Eutanásia, eu ficava com o Eutanásia.


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