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Alguns dias são feitos com suor e cerveja

Eu era muito jovem e por isso podia me dar ao luxo de matar algumas aulas de alemão e ficar em casa o dia todo, lendo algum escritor teuto-gaúcho ou o cubano Pedro Juan.

Tinha esse medo do que o mundo acabasse de repente, que tudo perdesse o sentido e acabasse, e por isso eu havia comprado dez caixas de cerveja. Fizera uma pilha com elas no meu quarto, encostadas na parede projetando-se ao teto, como um imenso totem de proteção. Das dez caixas, apenas oito restavam, o que dava menos de cem latinhas. Mas estavam lá, firmes e eternas como uma coluna do coliseu romano, ostentando falsa eternidade, que me dava certa calma e segurança quando eu despertava suando de pesadelos no meio da noite e as contemplava, até que seu efeito calmante e reconfortante me levassem a dormir novamente.

Eu precisava disso mais que do ar. As cervejas na parede me davam a falsa certeza de que o mundo não acabaria enquanto elas estivessem lá para ser bebidas. E enquanto eu as bebesse e as repusesse, continuaria existindo e sorvendo aquela infinitude segura que delas fluíam. Eu ia ser pai e não tinha emprego e minha mulher me sustentava e em breve estaria sustentando nós três e por isso eu precisava daquele totem etílico que me assegurava um pouco de tranqüilidade e confiança no futuro, que me dava um pouco de segurança que com certeza eu precisaria muito assim que os problemas começassem.

Mas havia também os momentos de dilema. Agora, no exato instante em que escrevo, sei que a lata que bebo esvaziou. E sei também que é a última lata que tinha na geladeira. O que leva à inescapável conclusão de que devo abrir mais um pacote de lata e diminuir minha pilha para sete, em vez de oito. Meu totem se consome perante meus olhos com seu próprio poder de se fazer bebido por mim.

As melhores idéias que uma pessoa tem na vida ela as tem mijando ou cagando. Ou trepando. Mas raramente assoando o nariz ou tirando cera do ouvido, o que certamente demonstrava uma peculiaridade intelectual e psicológica dominante nos momentos de excreção primária, cagar e mijar e trepar, que não apareciam nos demais momentos excretórios secundários.

A vida era um poço de palavras nem sempre com sentido. Agora mesmo acabei de me levantar e ir até a geladeira em busca de outra cerveja, embora tivesse acabado de escrever que elas haviam acabado. Esquecimento? Esperança? Esclerose múltipla adianta?

Um cachorro latia, as crianças gritavam no pátio do prédio, um vizinho ouvia música de qualidade duvidosa, os carros passavam ruidoso na estrada e tudo parecia insuportavelmente normal demais. Insuportavelmente contínuo, constante e imutável como as batidas de fundo em Lonely Is The World, a música mais triste e trágica que a humanidade já ouvira.

Percebi que o fim da folha chegava. Percebi que ainda não havia posto nenhum personagem no conto. Que ainda não havia xingado ninguém, soltado palavrões, falado de partes íntimas da anatomia feminina, falado mal da burguesia ou feito qualquer espécie de relato ou citação auto-biográfica. Meus leitores com certeza iriam brigar comigo, meu editor e meu agente literário também. Mas todos sabem que em verdade eu não tinha editor, nem agente, nem bosta nenhuma, nem sequer iria ganhar algum pila escrevendo isto.

Eu estava doido pra mijar. Minha tecla shift ficava travando o tempo todo e tornando mais doloroso do que devia o ato de escrever. Eu estava suando e já não agüentava mais aquilo. Eu queria acabar logo para poder abrir a oitava caixa de cerveja, dilapidar meu totem. Eu ainda não havia escrito nada interessante e chegara à conclusão de que agora era tarde demais pra tentar salvar o conto. Talvez eu botasse una palavrões no título para tentar enganar os leitores e me fazer lido. Talvez não. De qualquer forma eu já estava balançando as pernas embaixo da mesa, ansioso e tentando agüentar a vontade de dar uma mijada. Pensei em pedir desculpas aos leitores, mas concluí que isso era muito brega. Então simplesmente terminei o conto, botei título e data e fui mijar.


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