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O sentido da fome

Todo escritor é um farsante. Todo.

Desde o início da história, desde que o primeiro homem rabiscou alguma coisa, ele estava fazendo nada mais nada menos do que riscos aleatórios, tentando impressionar os outros e convencê-los de que aqueles riscos absurdos faziam sentido.

Passou a história. Passou o tempo, e hoje tudo igual, escritores que fingem que pensam e leitores que fingem que lêem, para parecerem mais cultos assim. Um pacto silencioso. Logo conclui-se que escritor e puto são as profissões mais antigas do mundo e ambas têm um ponto em comum: há sempre aqueles que seguem a carreira por prazer e aqueles que seguem por dinheiro.

Agora que já desmascarei-me como farsante, que já fiz o leitor entender que tudo que escreve aqui não passa de ficção, baboseira para encher lingüiça sem nenhuma ligação com a realidade, já posso começar a escrever livremente, entremeando minhas mentiras com os fatos reais que, no fundo, desejo ocultar.

A historinha começa comigo entrando num açougue. Já falei que estava fudido da vida? É, pra variar, estava de novo sem dinheiro, sem mulher, sem emprego e bebendo muito mais do que o bolso (e o fígado) permitia. Mas calma, logo você vai entender o que um bêbado falido faz num açougue em plenas 15 horas da manhã.

Estava dormindo (ou desmaiado de bêbado, não lembro) quando a Teka me ligou. Teka, pra quem não lembra, é minha ex-mulher cocainônoma que, embora eu não lembre o nome dela, consigo lembrar que o apelido verdadeiro era Peteka, porque vivia pulando entre a mão da galera. Teka era, assim sendo, o apelido do apelido, uma forma carinhosa de tratar ela e não pensar o tempo todo na fama que ganhara.

Pois bem, eu dormia quando toca desesperado o telefone. Era de manhã e, como você deve saber, não há nada no mundo que me cause maior pânico que telefone tocando de manhã.

Tocou, tocou, tocou, e eu estava bem quieto, escondido sem sequer respirar debaixo da coberta, na esperança que aquele sino do diabo parasse simplesmente de tocar. Num ímpeto de coragem pulei gritando e berrei com raiva:

--- ALÔ! ALÔ! ALÔ PORRA!

--- Alô... Anaca? É você?

--- É... quem fala?

A voz de mulher do outro lado da linha, apesar de eu não reconhecê-la de imediato, serviu, de fato, para me acalmar. Vou pular o diálogo todo para não ser acusado de melodramático e excessivamente detalhista.

O problema todo era o seguinte: ela tinha sido envolvida num negócio quente de revenda de pó, mas o troço todo melou e ela tinha acabado de sair da delegacia de polícia após ter passado a noite toda presa lá. Estava me ligando de um orelhão pois o telefone dela tava grampeado. Não podia encontrar com nenhum dos outros caras que tavam no negócio porque tinha medo de estar sendo seguida, de forma que não sei por que cargas d`água foi justamente em mim que ela acabou pensando.

A coisa toda era fácil, bastava eu ir no tal açougue e pegar com o dono um peru grande que ela tinha deixado lá na véspera, com um quilo e meio de bagulho dentro. Concordei em ajudá-la, desligamos e meu primeiro pensamento foi "aquela puta que se foda, vou voltar a dormir e esquecer tudo isso!".

Mas aí lembrei que estava sem mulher, e há quase seis meses sem comer ninguém também! Resolvi ajudá-la. Mas aí lembrei que mesmo que eu a ajudasse ela jamais foderia comigo de novo, pelo menos não depois de tudo aquilo que eu fizera com ela no passado. Desisti. Mas aí lembrei, de novo, que afinal eu gostava muito dela e ela de mim, e eu tinha um dever de ajudá-la em nome dos velhos tempos. Resolvi, de novo, ajudá-la. Mas pensando, pensando, me toquei que eu não gostava dela porra nenhuma e muito menos ela de mim, e que no fundo, no fundo, a única coisa que ainda sentíamos um pelo outro era ódio e ressentimento. Desisti.

Já ia me deitando na cama, reconfortado pelos rumos que meu pensamento tinha tomado, quando lembrei que ela era um ser humano. Um ser humano como eu, você o padeiro, o leiteiro, e todos os outros que são explorados pelos filhos-da-puta-donos-do-poder. Enfim, essa coisa magnífica e terrível ao mesmo tempo, uma dessas coisas com um problema, um problema que eu poderia ajudá-la, sendo eu também um desses maravilhosos aglomerados ambulantes de carne pensante. Não encontrei argumentos contra, de forma que tive que me levantar, jogar uma roupa suja no corpo, um sapato furado e sair pra agressão ofuscante da luz solar.

Bem... assim sendo, aqui estou eu. Meia hora depois, entrando no açougue. Chamei o homem num canto e expliquei a situação. Falávamos baixo, quase sussurando, para que o rapazinho de treze anos que ficara no balcão atendendo os clientes não escutasse o que dizíamos. De quando em quando ele se virava e dava uma espiada, para ter certeza que o guri não roubava nada.

O cara começou a coçar a barriga e a barba, e disse que devolvia o peru, mas ia querer a grana do prejuízo. Teka me avisara que o cara poderia querer forçar a barra ou dar um trambique, mas eu tinha que dar um jeito. Inventei que a polícia estava indo pra lá nesse exato momento, e que o melhor a fazer era ele me dar o peru antes que os homens chegassem, o que não demoraria mais que sete minutos.

O cara coçou a barba e me olhou longamente. Esperava uma piscada ou qualquer reação minha, mas os anos de álcool nos ensinam a ficarmos insensíveis. Ele estava caindo no blefe, e não era à toa, afinal isso prova que as mesas de pôquer são parte importante para o desenvolvimento pessoal de habilidades.

Pegou, por fim, o peru e entregou-me, após eu certificar-lhe que em breve voltaríamos a contactá-lo, assim que a poeira baixasse. Outra mentira, é claro.

Saí andando com o peru, subindo a ladeira íngreme onde ficava aquele verdadeiro mercado a céu aberto, desde açougue até sapateiro, de tudo tinha lá. Quando estava quase no topo ouvi as sirenes e virei pra trás pra ver os quatro carros de polícia se aglomerarem na frente do açougue e começarem a cuspir homens. Depois disso, só o que restou foi correr, o mais rápido que pude, maldizendo impressionado a capacidade fantástica que os escritores têm de inventarem mentiras por demais verossímeis.

Estava já longe, quando cheguei numa ponte e decidi examinar o pacote. Devia ter feito isso antes, mas se o açougueiro tivesse me enganado, ele é que estaria em maus lençóis a essa hora. Ele, Teka e mais um monte de gente que eu não tinha certeza de querer conhecer.

Meti as mãos dentro do peru e estava lá. Um pacote grande de maconha e um menorzinho de cocaína, ou algo muito parecido ao menos. Se eu vendesse aquilo tudo poderia arranjar grana por um bom tempo. Ou então poderia usar a cocaína para ter uma boa overdose e nunca mais ter que pensar em coisa alguma.

Olhei o peru, dava pra alimentar uma família inteira. Talvez a vida não fosse tão cruel assim, tirando as pessoas. Rasguei os dois pacotes, deixando o bagulho cair no riacho. Alguns peixes iam curtir um montão hoje. Isto é, iriam, se ainda houvessem peixes naquele riacho mais que poluído.

Botei o peru embaixo do braço e fui pra casa. É... a vida não era tão ruim assim. Ao menos hoje eu teria o que comer e, com um pouco de sorte, restaria o suficiente ainda para amanhã, se é que eu conseguisse viver um pouco mais para ver o amanhã.


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