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Morno e suave

O barulho era morno e suave. Era inverno. Os pingos caíam doces, açoitando o telhado. A tristeza era um manto noturno que nos envolvia, e a dor que já devia ter, há muito tempo, cedido, continuava ainda martelando nossas mentes, sufocando corações.

Saí de casa. Saí sem rumo pra rua, procurando bebida ou mulher que me pusesse novamente no caminho certo. Todo caminho era um abismo, para o qual eu caminhava hesitante sem pensar.

Precisava de cigarro. Precisava de cigarro e sexo. Bebida. Precisava de beijos quentes e arrastados, em ambientes esfumaçados, exóticos. Precisava de minha úlcera nervosa, que me guiava pela chuva como uma garotinha perdida dos pais.

Por um momento eu pude me ver. Sim, pude me ver. Uma garotinha magricela, com dentes exagerados e acavalados, andando perdida na noite até encontrar esse estranho, estranho chamado destino que agora me pega pela mão e me conduz a um lugar onde vou me sentir melhor. Ele acaricia minha mão e abraça meu corpo. Me dá um beijo na face, que me causa medo e nojo. Mas a noite é mais escura e mais fria e mesmo assim sigo com ele.

Seu hálito tem um cheiro diferente, mistura de álcool com bala de menta. Tem um cheiro antigo, que me lembra cheiro-de-papai. Me encosto na barba e deixo meu corpo pender solto enquanto ele me carrega no colo. O estranho sorri, sorri e diz que vai cuidar de mim. Que essa será a melhor noite da minha vida. Eu me encosto com força contra seu corpo, fugindo do frio e ele sorri novamente. Sorri e me retribui, com um estranho carinho em meus seios ainda não crescidos.

Chegamos numa casa. Minha mente dividida lutava por duas imagens. A metade com medo sugeria um barraco frio e quase caindo. A metade feliz sugeria uma mansão quente e cheia de comida. Mas não. É uma casa comum. Uma casa branca com um portão de ferro na frente, da altura da cintura do homem, pelo qual ele passa rapidamente olhando pros lados, certificando-se que não há ninguém olhando. Essa, enfim, é a casa do destino.

Meu rosto está quente e vermelho, ardendo, por causa do carinho do estranho. Ele desliza a mão entre minhas coxas e eu aperto com força as mãos em seu casaco, ameaçando gritar, mas ele diz "shhh, shhh. Silêncio meu bem. Calma. Ninguém vai te fazer mal aqui querida."

Entramos. Ele me põe sentada num sofá e diz pra esperar, ele já volta. Acende um abajur, revelando uma sala a meia-luz. Um uadro na parede mostra uma menina gritando. A sala está recheada de coisas antigas na penunbra, mas meu olhar se prende no quadro por longos minutos. Ele volta. Tenho frio. Ele me dá alguma coisa pra beber. Arde na garganta ao descer, mas é docinho. Tem gosto de chocolate. Vai me fazer bem, ele me diz.

Minhas roupas estão molhadas. Ele me traz um cobertor e me manda tirá-las, para não me gripar. Tiro o vestidinho e os tênis, ficando apenas com a calcinha branca, folgada em meu corpo.

Ele diz que vai me esquentar e me abraça. Começa a me beijar e, em seguida a deslizar a língua pelo meu corpo, fazendo coisas estranhas. Ele geme. Eu peço pra ele parar, tenho medo. Já tenho dez anos, sei que isso não é certo. Ele pára e me traz mais um copo da coisa doce, diz que vai me fazer bem.

Meu rosto está ardendo. Ardendo como fogo. Ele me assiste beber tudo e recomeça lentamente a me beijar de novo. Eu protesto. Mais baixinho um pouco, dessa vez.

Estou tonta. Ele começa a lamber meu corpo todo e a tirar minha calcinha agora. Não, eu não quero. Não sei o que ele está fazendo, mas é errado. Pare. De alguma forma eu sei que meu pai irá brigar comigo depois por causa disso, pare.

Mas ele silencia minha boca com a mão pesada, e começa a me lamber com força agora, fazendo com que toda minha cintura e minhas coxas se contraíam, numa dor estranha, forte.

Fico sem ar. Estou sem ar e tonta, e meu coração dispara endoidado enquanto gira minha cabeça. Eu quero que ele pare, mas algo em minha cabeça parece me culpar. A jogar em minha cara a verdade. É tarde demais. Começo a lutar com as pernas. Com o corpo. Ele me vira com força contra o sofá, pressionando minha cabeça contra as almofadas e jogando minhas pernas no chão. Me imobiliza de quatro. Mal consigo respirar. E enquanto segura com uma mão minhas duas mãos presas nas costas, com a outra parece despir-se.

O leitor já deu, por acaso, o rabo? Primeiro ele enfiou-me dois dedos. Dois dedos que entraram com força rasgando, enquanto eu chorava e soluçava, com a cabeça esmagada na almofada, quase sufocando sem ar. Depois enrabou-me. Enrabou-me com força e violência, enquanto seus dois dedos me masturbavam freneticamente. Entrou machucando, e cada soluço ou gemido parecia inútil em fazê-lo parar. Parecia, pelo contrário, fazer-lhe tomar mais gosto ainda pela coisa.

Eu sabia que isso era errado. Eu tinha dez anos. Sabia que isso me machucava, e que por causa disso meu pai brigaria comigo quando eu chegasse em casa. Eu sabia que a dor aumentaria mais ainda no outro dia. Dor que agora latejava e parecia lentamente se dissolver, enquanto eu lutava e chorava, sufocada, quase sem ar. Até que tudo pareceu muito distante, a cabeça doía e eu desmaiei.

Acordei no outro dia. Jogada num parque. Olhei pra baixo e minhas pernas estavam cheias de sangue coagulado. Tentei sair correndo, mas o corpo todo doía e estava fraco demais para me responder. Estava molhada. Molhada, com frio e com dor.

E é assim, assim, caro leitor que pude me ver e descobrir sobre a vida e o destino. A vida pode até ser um imenso trampolim, mas nós somos nada mais do que garotinhas perdidas, sozinhas na noite, esperando pelo destino para enrabar-nos.


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