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A festa de Ka

(1) - Ka

Ka acordou domingo de manhã e tomou sua decisão. A morte deveria ser uma ocasião alegre, e não de pesar e egoísmo.

O sol nascia lentamente, expulsando a luz azulada do apartamento de solteiro de Ka. O frio triste do inverno fez com que ele se deslocasse morosamente da sua cama para a luz tênue do sol.

Olhou pela janela, assistindo o despertar de uma cidade grande, correlacionando as luzes que se apagavam com o aumento do movimento nas ruas. Naquele momento foi que ele se decidiu, ele iria fazer uma festa. Iria morrer em grande estilo.

Comeu o pedaço de pão caseiro, já duro, que restava na mesa desde a antevéspera e, com um copo de leite, terminou seu café e saiu para o parque.

Ele deveria começar a arregimentar os convidados.

(2) - Mitchell

Mitchell seguia sua vida normal, ou quase. Estava indo bem, havia conseguido enganar a serviçal, fingindo manter uma conversa normal com ela. Fôra perfeito, despistara-a respondendo às perguntas triviais sem dar nenhuma pista sobre si, isso, é claro, sem deixar que eles notassem que ele já sabia de tudo.

Não era de hoje que eles perseguiam Mitchell. Eles estavam lá todos os dias, observando, espreitando, esperando que ele falhasse em qualquer coisa para virem no meio da noite, com seus holofotes e alto-falantes, gritando o seu nome e caçando-o.

Caça-lo, sim, como no dia em que ele, ainda criança, fugiu de casa, recusando o poder podre de sua família. Em questão de horas, toda a podre sociedade de já estava mobilizada a caça-lo. Recuperaram-no o levaram de volta pra casa, onde ele seria corrigido. A partir deste dia, desde este simples dia, a sociedade sabia que deveria vigiá-lo.

Mitchell era perigoso, e, de qualquer forma, eles desconfiavam disto agora. Só podia ser este o motivo pelo qual encontrara Ka na rua, de forma supostamente casual, e este o convidara para uma festa.

Ele havia errado, droga, havia deixado que percebessem algo. Ka estava visivelmente diferente do normal, daquela relação gélida e cordial do escritório. Mas isso não mais importava agora, Mitchell tinha que ir à festa, senão eles o buscariam novamente no mato com seus holofotes.

Com uma pequena diferença que, desta vez, um simples tiro na base do crânio cuidaria para que ele nunca mais incomodasse. Desta vez ele não poderia simplesmente chorar.

Mitchell iria à festa, mas antes algo deveria ser feito. Ele tinha pouco material, porém suficiente para começar a girar as pesadas engrenagens que destruiriam tudo.

Ele prepara isso a vida inteira, e o tempo certo havia finalmente chegado, desta vez ele destruiria a todos!

(3) - Raquel

Era de manhã cedo. Raquel andava a passos rápidos rumo ao trabalho, quando foi parada por seu irmão, Ka, numa das ruelas escuras e estreitas que caracterizavam a cidade.

Ficou feliz, à princípio, em ver o irmão, porém mudou rápido para uma preocupação passiva. Não era comum Ka procurá-la, certamente algo havia de ter ocorrido.

Abraçou o irmão e abrigou-se no peito deste. Apesar da aparência pálida e doentia, e da magreza cada vez maior, Ka retinha ainda seus braços fortes, que tocavam e protegiam Raquel. Ka fôra gentil, como sempre era, em não tê-la procurado em casa, pois sabia que isso traria problemas à ela. O marido dela não gostava de que ela o visse e chegava, até mesmo, a proibir que fosse vê-lo.

Mas ela não podia ficar muito tempo longe dele e ia, pelo menos três vezes por semana, levar comida a ele em seu apartamento. Ela fazia de tudo, bolos, pães, assados e outros pratos, na incerteza de que se ele comeria ou não determinada comida. Na maioria das vezes nunca chegava a vê-lo, mas só em estar lá, ela tinha uma chave do apartamento, ela já matava um pouco da saudade dele.

Ka contou-lhe que daria uma festa no sábado, e que era muito importante para ele que ela fosse. Ela jurou, abraçando-o forte, de que iria à festa. Porém mais espantada que ela estivesse não conseguiu arrancar-lhe o motivo da festa.

Ficaram parados, em silêncio e abraçados, por cerca de uns dez minutos. Ela admirava os olhos azuis e melancólicos de Ka, em contraste com o rosto pálido, e o escudo preto formado pelos seus cabelos.

Ela alisava as costas dele e desembaraçava seus cabelos. Apesar da aparência débil ele era ainda muito belo. Era fraco e precisava de alguém que o amasse e cuidasse dele, alguém que o compreendesse e tolerasse seus estranhos livros de cabeceira. Ela se questionava se não havia errado ao casar-se assim tão cedo, ela tinha vinte anos e estava casada já há três, talvez ela devesse ter escolhido ficar com ele, ao seu lado, apoiando-o.

Lembrou-se de quando eram crianças, e que, quando acordava no meio da noite com medo, sempre podia ir até ele que ele acordaria e a abraçaria, para que ela dormisse segura no calor e no conforto de seu corpo e seu toque.

Raquel estava, já, atrasada para o trabalho e, embora quisesse ficar ali para sempre, abraçada a ele sem dizer nada, abraçou-o mais forte e, com um beijo quente e doce na face esquerda, despediu-se dele.

Seguiu andando sem olhar para trás, e jurou a si mesma que usaria o melhor vestido que tivesse para ir à festa.

(4) - Livros de Cabeceira

Ka era um ávido leitor e, embora vários volumes freqüentassem a cabeceira de sua cama, haviam quatro em particular que lá sempre se encontravam, apesar da repulsa que sempre despertavam nos raros visitantes.

Um desses volumes era um livro grosso com uma capa de couro preta, que não exibia o título, autores ou quaisquer outros adereços. Dentro, após a folha de rosto, achava-se o título da obra, escrito em letras simples centradas numa folha branca. A folha dizia: "O Livro das Fábulas".

Entre as dezenas de fábulas de livro, esta era, talvez, a mais lida por Ka, era ela: "Noite"

"Em um lugar muito distante, havia um reinado, cujas glórias e belezas de seus feitos, seu povo e construções eram de tal grandeza, que em todos os outros reinados, não só nos reinos vizinhos, mas até mesmo nos mais distantes, eram prestadas homenagens e centenas de outras provas de encanto e admiração que todos sentiam por este reinado. Este próspero reinado chamava-se Khandir.

E, dentre todos os cavaleiros deste reinado, havia um jovem, cuja honra e coragem se faziam incontestáveis, que destacava-se como um exemplo a ser seguido por todos os habitantes, sem o qual, teria sido impossível alcançar-se tal prosperidade naquele lugar.

Ferner, era como se chamava, subira rapidamente de soldado a guarda, depois a cavaleiro, à guarda de elite e, por fim, à segurança pessoal do rei. Porém Ferner chegara já aos vinte e um anos, e ainda não havia casado ou sequer namorava as moçoilas da cidade.

O rei, preocupado, constantemente alertava Ferner da necessidade de um esposa, mas este sempre escapava do assunto dizendo que estava providenciando uma. Não havia cidadão algum no reinado que recusaria a mão de sua filha a ele ou donzela, por mais bela que fosse, que não o desejasse.

Porém, quando a noite chegava, não era nos bares e nas tavernas da cidade que ele poderia ser encontrado se divertindo, assim como os demais cavaleiros e homens da cidade. Pelo contrário, aos primeiros raios do crepúsculo, ele montava em seu cavalo e disparava a galopar para a floresta.

Galopava mato adentro até encontrar uma clareira afastada, quando então descia de seu cavalo, estando o sol, a esta altura, já escondido e milhares de estrelas brilhando e flutuando pela noite, e deitava-se na relva úmida contemplando o espetáculo.

Observava pasmado a chegada da noite, quando então era envolvido em um mundo louco de estrelas e desejos, impulsionado pela suave mão da noite, encorajado pelo doce sussurro que ela soprava e, por fim, confortado pelo corpo dela, tão longe aos toques dele, e que, assim, fazia-lhe passar o dia inteiro esperando o retorno da noite e desejando finalmente tocar-lhe, nem que fosse por um breve instante.

Assim, todos os dias, quase como um ritual, Ferner aguardava pela consolidação do seu amor com a noite, nem que isso lhe custasse tudo o que tinha.

Certo dia, enquanto Ferner ansiava, deitado na relva, a entrada da noite, o sol, que há muito acompanhava o sofrimento de Ferner, apiedou-se e aproximou-se dele.

Ferner acompanhava os raios azuis da lua, excitado pela proximidade da noite, quando sentiu um calor enorme. Olhou para o lado e parecia que o sol havia se chegado mais perto dele, irradiando seus potentes raios vermelhos.

- Ferner - disse o sol - há muito que eu venho acompanhando tuas dores e angústias. Eu sei o que se passa contigo.

Ferner, que já encontrava-se vermelho devido ao calor intenso, ruborizou-se ainda mais. "Como? Como poderia o sol ter descoberto tudo?"

- Sim Ferner, eu sei. Não és o primeiro, desde que o homem pisou na terra pela primeira vez muitos foram os poetas, reis, loucos e bêbados que por ela se apaixonaram. Sim, muitos foram e muita é a beleza da noite. Tão bela que eu a teria para mim, se ela não se recusasse a vir até que tenha eu me ido.

- Porém, dos milhares de homens que vi, nenhum amou-a tanto quanto tu o fizestes. Os poeta cantam sua beleza em versos até que, por fim, a abandonam, os reis, bem, estes são vis e com o tempo eles a trocam pelos assuntos do reino. Os bêbados simplesmente a esquecem e os loucos, ora, eles amariam qualquer coisa sem nunca realmente poder compreender o amor em sua plenitude.

- Mas tu, tu és diferente. Desde a primeira vez que a amaste, eras um infante então, até hoje, nunca minguastes teu amor por ela ou sequer contastes a outrem. Mantivestes tua fidelidade e eu, sendo o sol, e assim sendo tudo sei, sei que teu amor é legítimo e portanto recompensar-te-ei.

O calor era agora insuportável, mas nada mais importava a Ferner. Agora ele era livre, sentia-se nu perante o sol.

- Se tu realmente a amas, dar-te-ei agora uma única chance. Dar-te-ei agora a chance de finalmente juntar-se a ela, acompanha-la, não só por uma vida, mas por toda a eternidade. Mas, rogo-lhe, reflita antes e então responda, pois uma vez feita a escolha ela será irreversível.

Os pensamentos de Ferner moviam-se em sua cabeça mais rápidos que os raios no céu. Teria tudo o que sempre sonhara, estaria, até o final dos tempos, junto à noite. Sua resposta não seria outra senão: "Sim, eu desejo".

Dito isso o sol intensificou seus raios até que as imagens ofuscadas não passassem de um borrão colorido. Com um raio final fulminou o corpo de Ferner.

Habilmente o sol conduziu a alma de Ferner, que já começava a se desfazer, até o receptáculo segura da lua e então se foi.

Ferner olhou para si e enxergou-se no corpo azul e redondo da lua. Estaria, para sempre, ao lado da noite agora.

Chega enfim noite. Ferner, maravilhado, pôde contemplá-la como nunca antes. Estava tão perto dela que se tivesse ainda um braço poderia simplesmente estica-lo e toca-la.

Foi, porém, quando finalmente tentou aproximar-se dela e finalmente toca-la e senti-la junto de si, que o pânico e o terror lhe invadiram. Ele não podia toca-la. Ele via à sua frente bilhões de estrelas que inebriavam envolviam o corpo suave e convidativo da noite, porém, aquele corpo feminino que ele agora ocupava mantinha-se inerte e impedia-o de tocar a noite.

Desesperado, percebeu que sua alma estava encarcerada naquele corpo da lua, e que ali ficaria eternamente. Em agonia Ferner, a lua, empalideceu, e sua cor, outrora um azul-lilás radiante, passou a ser uma débil e acinzentada luz branca.

Nunca estivera Ferner tão perto da noite, nem ao mesmo tempo tão longe".

(5) - Marcelo

Marcelo vagava pelo mundo. Em seus olhos, seu olhar era vago e vazio, desprovido de razão.

Já havia sido ele um rapaz feliz uma vez. Sim, tivera uma infância normal e uma juventude invejável, até que lera o amaldiçoado "Livro das Fábulas".

Nunca houvera notado algo de especial no livro, e o pegara para ler quase que sem querer. Porém ao começar a folhear as primeiras páginas, e isso devia fazer agora uns três dias, tudo, todo o universo, seus amigos, seus pais, família, tudo mesmo ao redor dele, dissolveu-se, transformando-se numa alucinação febril de carne e sangue, transpirando e perseguindo-o.

Uma das fábulas despertara um particular interesse nele. Ele podia sentir o poder e a malevolência que dela emanavam, atraindo-o.

Marcelo andava pela rua escura quando finalmente compreendeu um detalhe, que era, por si só, uma minúscula fagulha de tudo que o livro lhe tinha a dizer, mas que serviria de guia para ele.

Por que devia Ferner morrer? Por que para alcançar esse desejo máximo precisava sua vida ser tomada? Era claro, claro e límpido como cristal, e só agora Marcelo notava, tão discreto era esse fato que só agora ele o percebia.

Como se lhe houvessem sussurrado de passagem a resposta no ouvido, Marcelo entendia tudo nitidamente agora. Somente com a morte viria a liberdade, o fim eterno das barreiras e prisões físicas.

Ele tinha que parar de querer para obter tudo o que queria. Assim, ao morrer, Ferner poderia ter chegado até a noite, porém tendo sido sua alma aprisionada na Lua, teria vida eterna, estando portanto limitado eternamente às barreiras físicas.

Portanto, assim como Ferner, Marcelo deveria morrer. Morrer, pois assim tornaria-se um deus. Parou, com um gesto brusco e violento, um rapaz que andava em sentido contrário. "Senhor, eu lhe imploro, permita-me que eu vá à sua festa", perguntou ele ao estranho.

Ka, um tanto quanto surpreso (apesar disto ser apenas uma pálida sensação atualmente), virou-se àquele garoto tão jovem e tão belo e disse-lhe com um sorriso cordial:

- Claro, com certeza! Você é meu convidado agora, Marcelo.

- Obrigado, Ka! Jamais te esquecerei.

E com um abraço fraterno despediram-se e partiram, fazendo planos para a festa de sábado.

(6) - Sábbado

Por fim chegara sábado, o dia da festa. A cidade inteira parou e prendeu sua respiração, seus cheiros fétidos dos subúrbios e a fumaça tóxica dos carros e das fábricas, esperando que a multidão se aglomerasse no cinzento prédio de três andares em que residia Ka.

Um grande rei certa vez escrevera: "Toda cidade é como um grande jarro de cristal, com seu corpo esguio e pescoço fino. E é para este jarro que se dirigem todas as almas e emoções do lugar, aprisionadas eternamente com suas raivas e frustrações no anonimato da sociedade.

Porém, toda sociedade, assim como toda criação humana, é imperfeita e gera indivíduos desalinhados, deslocados da sociedade, da qual não podem fazer parte nem serem totalmente excluídos.

Estes são então considerados uma sujeira, uma imperfeição, sendo assim desprezados e ignorados. É sabido, porém, que estes indivíduos refletem-se também como uma imperfeição, uma falha num ponto infinitesimal, no grande vaso feito do puro cristal.

As almas e agonias da cidade, aprisionadas para sempre nesse vaso, aproveitam a falha, incrustrando-a, pressionado-a, penetrando-a e corroendo-a. Essa falha se expande para uma trinca até que por fim o vaso se parte. E quanto mais puro for o cristal, mais ele se estilhaçará.

E isto acontecerá com este reino, assim como a todos os reinos vizinhos, assim como aconteceu aos que os precederam e acontecerá aos que se seguirão. Pois até mesmo a cidade sagrada partiu-se em duas metades por causa de um único anjo."

Às oito horas, horário de início da festa, as ruas já estavam desertas, exceto pelos mendigos que congelavam com o vento frio. O barulho caótico da cidade era apenas um chiado, e o imenso mar de luzes acesas parecia apenas morto, fraco, sem vida e sem cor. A cidade aguardava, enquanto prendia o fôlego.

(7) - A festa

Ka, que sempre fora temido pela vizinhança pela sua aparência eternamente pálida e doentia, e também pelos trapos que vestia, recebeu seus convidados que começavam a chegar, estando ele com um ânimo e trajes que o deixavam quase irreconhecível.

A enorme veste preta e vermelha, formada com milhares de ângulos e costuras confusas, causava espanto e admiração aos que chegavam. Parecia estar sempre em um movimento constante e monótono, que se moldava e se ajustava ao corpo de Ka à medida que ele se movia.

O vermelho de seu traje era tão forte e tão vívido, e tão atraente em seu movimento, que trazia, de imediato, a idéia do mais puro e fresco sangue escorrendo e subindo pelo corpo, ao passo que o negro era tão denso e sufocante que, de fato, um simples olhar suscitava a sensação de se estar caindo, mergulhando interminavelmente nas trevas do infinito abismo cercado de sangue.

O tecido de seu traje era de um material macio e sedoso, que envolvia e adornava seu corpo até chegar ao pescoço, d'aonde emergia a face de Ka, muito mais pálida que o normal, contrastando com o traje e os cabelos negros, que estendiam-se até misturarem-se com a veste.

Porém, por mais fascínio que a veste pudesse despertar, ou talvez por causa da estranha aura que parecia pairar ao redor de Ka, poucas pessoas ousaram tocá-la, e os que fizeram não ousaram repeti-lo, pois o sentimento causado por este contato era um misto de pânico e vazio profundo.

Já batiam dez horas no velho relógio de pêndulo quando o prédio todo, e não apenas o velho apartamento de Ka, estava lotado, fervilhando de pessoas e derramando luz e barulho sobre a cidade. Todos os moradores, incluindo a velha governanta, estavam na festa, mas Ka começava a ficar apreensivo, Raquel, sua irmã, ainda não chegara.

Já haviam três horas de festa e praticamente todos os convidados já estavam lá, levando consigo algumas pessoas a mais também, como se fosse por costume.

As mais de mil pessoas se espremiam e gritavam no prédio velho. As luzes todas acesas, pela primeira vez, denunciavam o desleixo das paredes cinzentas, com pedaços de reboco já caídos e com bolores e infiltrações aberrantes.

O cheiro do mofo era cada vez mais sufocado pelo cheiro do álcool das bebidas. Algumas pessoas estavam já há horas em um quarto com os mesmos parceiros, enquanto outros percorriam insaciáveis os quartos, na busca do prazer com um número máximo de pessoas.

A orgia e os delírios drogados estenderam-se dos quartos para as salas, cozinhas, banheiros e salões de dança. O prédio inteiro dançava e tranzava como um só corpo. Nos quartos já começavam as auto-mutilações e as dilacerações. As paredes foram aos poucos manchando-se de sangue e esperma. Num quarto do térreo uma gestante, que era invadida violentamente por vários rapazes, abriu o próprio ventre, arrancando o feto de seis meses e despedaçando-o no ar, para que fosse este devorado logo em seguida pelos amantes de ambos os sexos.

Alheio a tudo estava Ka. Encostado num canto experimentava a angústia alucinada da ausência de Raquel, que ele tentava , em vão, amenizar inalando a fumaça tóxica dos alucinógenos.

Quase todos estavam na festa, o prefeito, os políticos locais, a gangue de marginais de quinze anos, as crianças do coral da igreja (que eram curradas pelos pais e um grupo formado em maioria pelos comerciantes locais), todos os colegas de trabalho de Ka e centenas de outras pessoas, pertencentes a um batalhão de estranhos ou quase-desconhecidos, quando finalmente o último convidado que faltava chegou.

Raquel entrou no salão principal com uma expressão de medo e um vazio nos olhos. Usava um vestido longo, provavelmente comprado numa loja cara do centro da cidade, azul-claro e de um tom belíssimo, que chegava a quase emanar um brilho próprio.

Um borrão na maquiagem, denunciando que ela chorara, constituía-se na única coisa fora da harmonia e da sincronia da beleza perfeita de seu corpo e sua face.

Ka correu na direção dela, pisoteando uma mulher cuja a morte não impedira o amante de continuar, e abraçou-a, confortando-a.

Ela começou a desculpar-se, explicando que tivera que esperar o marido ir dormir para poder sair, mas ele calou-a dando-lhe o beijo que esperara uma vida toda para ser dado.

Raquel relaxou-se e sentiu-se liberta pela primeira vez na vida. Os dois subiram os degraus da enorme escadaria e retiraram-se para o quarto de Ka, que ele mantivera trancado durante toda a festa.

Quando finalmente o silêncio apoderou-se do prédio, e a música parou de tocar por não ter mais quem ouvi-la a não ser os corpos, e os restos dilacerados, dos foliões, que ali jaziam e banhavam o chão e todas as paredes do local; Íteris, o Senhor das Asas Negras, percorreu todos os andares, adquirindo ali seu alimento, e todas as coisas que iria levar consigo, até que por fim chegou ao quarto de Ka.

Íteris, com sua pele marrom e grudenta, estendeu suas asas na envergadura máxima e, como em resposta, a porta se abriu, revelando o quarto, cujas paredes estavam revestidas pelos restos mortais de Raquel e Ka.

Ainda não havia decidido se levaria os dois ou não. Pegou os três livros que repousavam tranqüilos e imaculadamente limpos na mesa de cabeceira de Ka, um dos quais contava a lenda de quando Iterzabel passou a ser Íteris.

Assim, Íteris, o Senhor das Asas Negras, guardou os três livros sob suas asas e, após esculpir seu sinal com a unha no que um dia fora a testa da cabeça de Ka, partiu, deixando enfim o prédio vazio.

Terminat hora diem; terminat auctor opus.


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