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Histórias e Sonhos
Marginália
A Nova Califórnia
Recordações do Escrivão Isaías Caminha
O Triste Fim de Policarpo Quaresma

Histórias e Sonhos

Quando a impressão deste livro ia já pela metade, ocorreu o falecimento de Prudêncio Cotejipe Milanês, a quem é ele dedicado. Milanês foi meu chefe de seção na Secretaria da Guerra; mais do que isso, porém, foi um meu amigo bondoso e paternal.

Não fora ele e alguns outros companheiros, não me lembraria mais de que havia passado pelas catacumbas do Quartel General, onde se guardam, com o máximo cuidado, nos seus ataúdes, adornados de belos dourados e pinturas, tantas múmias que nem hieróglifos enigmáticos possuem nos seus caixões mortuários, a fim de permitir ao curioso, com esforço e sagacidade, decifrar-lhes os nomes, o que foram e o que fizeram de útil e grande na vida.

Milanês morreu, como já foi dito; e a dedicatória devia ser em outros termos: à memória, etc., etc., etc. Tem de ficar como está, fazendo crer ao desprevenido que ele ainda é deste mundo. Não havia inconveniente algum nisso, pois, para mim, talvez seja essa a forma exata e justa de homenagear o meu generoso amigo, tanto ele é vivo na minha saudade e na minha gratidão. Era preciso, entretanto, explicar isto ao leitor; e é O que estas breves linhas pretendem.

Rio, 8 de dezembro de 1920

L.B.

AMPLIUS!

Como me parecesse necessário um prefácio para essa coletânea de contos e fantasias de várias épocas e cousas de minha vida, julguei-me no direito de republicar, à testa dela, as linhas que se seguem, com o título acima, editadas poucos meses depois do aparecimento do meu livro Triste fim de Policarpo Quaresma.

Apareceram em um jornal de grande circulação da cidade do Rio de Janeiro, A Época, e eu tive com elas o intuito de esclarecer o que poderia haver de obscuro em certas passagens dos meus humildes trabalhos. Trata-se agora de contos e cousas parecidas, mais do que nunca elas me parecem necessárias á boa inteligência do que a minha mão inábil quis dizer e não soube; e eu as transcrevo aqui, na suposição de que não são demais.

Ei-las como saíram em setembro de 1916:

Tendo publicado, há poucos meses um livro, poderá parecer a alguns leitores que estas linhas se destinam a responder críticas feitas à minha humilde obra. Não há tal. Já não sou mais menino e, desde que me meti nessas coisas de letras, foi com toda a decisão, sinceridade e firme desejo de ir até ao fim.

Quem, como eu, logo ao nascer está exposto á crítica fácil de toda gente, entra logo na vida, se quer viver, disposto a não se incomodar com ela.

A única crítica que me aborrece é a do silêncio, mas esta é determinada pelos invejosos impotentes que foram chamados a coisas de letras, para enriquecerem e imperarem. Deus os perdoe, pois afirma Carlyle que men of letters are a perpetual priesthood.

De resto, todos os críticos só tiveram gabos para a minha modesta novela; e, se não foram alguns me serem quase desconhecidos, temeria que fossem inimigos disfarçados que conspirassem para me matar de vaidade.

A razão destas linhas é outra, muito outra, e eu explico já.

A emoção do recebimento de uma carta anônima só me foi dado experimentar ultimamente. Muitas dessas coisas banais da vida têm-me chegado assim tardiamente e algumas, pouco corriqueiras, antes do tempo normal aos outros.

A carta era anônima, mas absolutamente não era injuriosa. Vinha escrita em linda letra e eu tenho pena em não acreditá-la feminina, pois se fosse meteria uma inveja doida aos galantes dos cinemas e maxixes da moda, linda gente feita de pedacinhos de mulheres feias.

Não tive portanto a emoção da carta anônima, pois a missiva era cortês, fazendo sobre o meu Policarpo reparos sagazes e originais.

Simpatizei tanto com o escrito que não pude furtar-me ao desejo de responder, de qualquer forma que pudesse, ao desconhecido autor.

E o que pretendo fazer aqui.

Apesar de toda a inteligência que ressuma nas palavras que a epístola contém, não me parece que o autor estivesse, em certos quarteirões, muito fora dos modos de ver da nossa retórica usual.

Percebi que tem de estilo a noção corrente entre Leigos e... Literatos, isto é, uma forma excepcional de escrever, rica de vocábulos, cheia de ênfase e arrebiques, e não como se o deve entender com o único critério justo e seguro: uma maneira permanente de dizer, de se exprimir o escritor, de acordo com o que quer comunicar e transmitir.

Como não tocasse de frente em tal questão, deixo de parte semelhante ponto e reservo uma resposta mais ampla, detalhada para qualquer crítico ulterior. Veremos, então, se Descartes tem ou não estilo; e se Bossuet é ou não um estilo.

O que, porém, me faz contestar o meu amável correspondente anônimo, é a sua insistência em me falar na Grécia, na Hélade sagrada, etc., etc.

Implico solenemente com a Grécia, ou melhor: implico solenemente com os nossos cloróticos gregos da Barra da Corda e pançudos helenos da praia do Flamengo (vide banhos e mar).

Sainte-Beuve disse algures que, de cinqüenta em cinqüenta anos, fazíamos da Grécia uma idéia nova. Tinha razão.

Ainda há bem pouco o senhor Teodoro Reinach, que deve entender bem dessas coisas de Grécia, vinha dizer que Safo não era nada disso que nós dela pensamos; que era assim como Mme. Sévigné. Devia-se interpretar a sua linguagem misturada de fogo, no dizer de Plutarco, como uma pura exaltação da mulher. A poesia sáfica seria, em relação à mulher, o que o diálogo de Platão é em relação ao homem. Houve escândalo.

Não é este o único detalhe, entre muitos, para mostrar de que maneira podem variar as nossas idéias sobre a velha Grécia.

Creio que, pela mesma época em que o senhor T. Reinach lia, na sessão das cinco academias reunidas, os resultados das suas investigações sobre Safo, se representou na Opera, de Paris, um drama lírico de Saint-Saëns - Dejanira. Sabem os leitores como vinham vestidos os personagens? Sabem? Com o que nós chamamos nas casas das nossas famílias pobres - colchas de retalhos. Li isto em um folhetim do senhor P. Lalo, no Temps.

Esta modificação no trajar tradicional dos heróis gregos, pois se tratava deles no drama, obedecia a injunções das últimas descobertas arqueológicas. O meu simpático missivista pode ver aí como a sua Grécia é, para nós, instável.

Em matéria de escultura grega, podia eu, com o muito pouco que sei sobre ela, epilogar bastamente. E suficiente lembrar que, de acordo com os preceitos gregos, as obras esculturais não podiam ser pintadas.

É que eles tinham visto os mármores gregos lavados pelas chuvas; entretanto, hoje, segundo Max Collignon, está admitido que as frisas do Partenon eram coloridas.

A nossa Grécia varia muito e o que nos resta dela são ossos descamados, insuficientes talvez para recompô-la como foi em vida, e totalmente incapazes para nos mostrar ela viva, a sua alma, as idéias que a animavam, os sonhos que queria ver realizados na terra, segundo os seus pensamentos religiosos.

Atermo-nos a eles, assim variável e fugidia, é impedir que realizemos o nosso ideal, aquele que está na nossa consciência, vivo no fundo de nós mesmos, para procurar a beleza em uma carcaça cujos ossos já se fazem pó.

Ela não nos pode mais falar, talvez nem mesmo balbuciar, e o que nos tinha a dar já nos deu e vive em nós inconscientemente.

Como se vê, o meu correspondente está preso a idéias mortas; e, em matéria de novela, por certas notações que faz, à minha, se não está jungida a um pensamento morto, deixou-se prender por uma generalização que a experiência do gênero não legitima.

Estranha o meu inesperado correspondente que o meu modesto livro fuja à questão de amor; não seja ela o eixo do livro. Mas, caro senhor, essa questão nunca foi primordial no romance.

Nem os antigos, nem os modemos. Nem nos franceses, nem nos espanhóis. Se o senhor me cita Dáfnis e Cloé, eu cito o Satyricon; se o senhor me cita a Princesse de Clèves, eu lhe apresento Lazarlio de Tormes.

Nos grandes mestres modernos, Balzac, Tolstói, Turguêniev, Dostoievski, quase sempre o amor é levado para o segundo plano; e essa sua generalização de que o primordial do romance, e seu característico, por assim dizer, é tratar de uma aventura de amor, é tão verdadeira e necessária como aquela regra das três unidades, em matéria de drama e tragédia, de que os críticos antigos faziam tanta questão, citando Aristóteles, que nunca a tinha estabelecido.

Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros, e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm em comum e dependente entre si.

A literatura do nosso tempo vem sendo isso nas suas maiores manifestações, e possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais a tal beleza perfeita da falecida Grécia, não mais a exaltação do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todas as raças e classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se entendam sob o açoite da vida, para maior glória e perfeição da humanidade.

É ideal dos nossos dias que é ainda beleza a palpitar nas suas mais altas manifestações espirituais; e não, como o meu correspondente pensa, o ressurgimento de concepções desaparecidas, de que só conhecemos poucas e raras manifestações exteriores, que só podem entorpecer a marcha da nossa triste humanidade para uma exata e mais perfeita compreensão dela mesma.

Não desejamos mais uma literatura contemplativa, o que raramente ela foi; não é mais uma literatura plástica que queremos, a encontrar beleza em deuses para sempre mortos, manequins atualmente, pois a alma que os animava já se evolou com a morte dos que os adoravam.

Não é isso que os nossos dias pedem; mas uma literatura militante para maior glória da nossa espécie na terra e mesmo no Céu.

O meu correspondente acusa-me também de empregar processos de jornalismo nos meus romances, principalmente no primeiro.

Poderia responder-lhe que, em geral, os chamados processos do jornalismo vieram do romance; mas mesmo que, nos meus, se dê o contrário, não lhes vejo mal algum, desde que eles contribuam por menos que seja para comunicar o que observo; desde que possam concorrer para diminuir os motivos de desinteligência entre os homens que me cercam.

Se conseguirem isso, por pouco que seja, dou-me por satisfeito, pois todos os meios são bons quando o fim é alto; e já Brunetiére me disse que o era, ao sonhar em esforçar-me, na medida das minhas forças, para fazer entrar no patrimônio comum do espírito dos meus contemporâneos, consolidando pela virtude da forma tudo o que interessa o uso da vida, a direção da conduta e o problema do nosso destino.

E, como ele queria, assim como querem todos os mestres, eu tento também executar esse ideal em uma língua inteligível a todos, para que todos possam chegar facilmente à compreensão daquilo a que cheguei através de tantas angústias. No mundo, não há certezas, nem mesmo em geometria; e, se alguma há, é aquela que está nos Evangelhos: amai-vos uns aos outros.

Para atingir tão alto escopo, tudo serve; e, como são Francisco Xavier, todos nós, que andamos em missão entre hindus, separados em castas hostis, entre malaios ferozes e pérfidos, entre japoneses que se guerreiam feudalmente; todos nós, dizia eu, só devemos ter a divisa do santo: "Amplius! Amplius!" Sim; sempre mais longe!

Rio, 31-8-16



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