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José de Alencar
O Guarani
A Viuvinha
Cinco Minutos

O Guarani

II Lealdade

A habitação que descrevemos, pertencia a D. Antônio de Mariz, fidalgo português de cota d’armas e um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro.

Era dos cavalheiros que mais se haviam distinguido nas guerras da conquista, contra a invasão dos franceses e os ataques dos selvagens.

Em 1567 acompanhou Mem de Sá ao Rio de Janeiro, e depois da vitória alcançada pelos portugueses, auxiliou o governador nos trabalhos da fundação da cidade e consolidação do domínio de Portugal nessa capitania.

Fez parte em 1578 da célebre expedição do Dr. Antônio de Salema contra os franceses, que haviam estabelecido uma feitoria em Cabo Frio para fazerem o contrabando de pau-brasil.

Serviu por este mesmo tempo de provedor da real fazenda, e depois da alfândega do Rio de Janeiro; mostrou sempre nesses empregos o seu zelo pela república e a sua dedicação ao rei.

Homem de valor, experimentado na guerra, ativo, afeito a combater os índios, prestou grandes serviços nas descobertas e explorações do interior de Minas e Espírito Santo. Em recompensa do seu merecimento, o governador Mem de Sá lhe havia dado uma sesmaria de uma légua com fundo sobre o sertão, a qual depois de haver explorado, deixou por muito tempo devoluta.

A derrota de Alcácer-Quibir, e o domínio espanhol que se lhe seguiu, vieram modificar a vida de D. Antônio de Mariz.

Português de antiga têmpera, fidalgo leal, entendia que estava preso ao rei de Portugal pelo juramento da nobreza, e que só a ele devia preito e menagem. Quando pois, em 1582, foi aclamado no Brasil D. Felipe 11 como o sucessor da monarquia portuguesa, o velho fidalgo embainhou a espada e retirou-se do serviço.

Por algum tempo esperou a projetada expedição de D. Pedro da Cunha, que pretendeu transportar ao Brasil a coroa portuguesa, colocada então sobre a cabeça do seu legitimo herdeiro, D. Antônio, prior do Crato.

Depois, vendo que esta expedição não se realizava, e que seu braço e sua coragem de nada valiam ao rei de Portugal, jurou que ao menos lhe guardaria fidelidade até a morte. Tomou os seus penates, o seu brasão, as suas armas, a sua família, e foi estabelecer-se naquela sesmaria que lhe concedera Mem de Sá. Aí, de pé sobre a eminência em que ia assentar o seu novo solar, D. Antônio de Mariz, erguendo o vulto direito, e lançando um olhar sobranceiro pelos vastos horizontes que abriam em torno, exclamou:

- Aqui sou português! Aqui pode respirar à vontade um coração leal, que nunca desmentiu a fé do juramento. Nesta terra que me foi dada pelo meu rei, e conquistada pelo meu braço, nesta terra livre, tu reinarás, Portugal, como viverás n’alma de teus filhos. Eu o juro!

Descobrindo-se, curvou o joelho em terra, e estendeu a mão direita sobre o abismo, cujos ecos adormecidos repetiram ao longe a última frase do juramento prestado sobre o altar da natureza, em face do sol que transmontava.

Isto se passara em abril de 1593; no dia seguinte, começaram os trabalhos da edificação de uma pequena habitação que serviu de residência provisória, até que os artesãos vindos do reino construíram e decoraram a casa que já conhecemos.

D. Antônio tinha ajuntado fortuna durante os primeiros anos de sua vida aventureira; e não só por capricho de fidalguia, mas em atenção à sua família, procurava dar a essa habitação construída no meio de um sertão, todo o luxo e comodidade possíveis.

Além das expedições que fazia periodicamente à cidade do Rio de Janeiro, para comprar fazendas e gêneros de Portugal, que trocava pelos produtos da terra, mandara vir do reino alguns oficiais mecânicos e hortelãos, que aproveitavam os recursos dessa natureza tão rica, para proverem os seus habitantes de todo o necessário.

Assim, a casa era um verdadeiro solar de fidalgo português, menos as ameias e a barbacã, as quais haviam sido substituídas por essa muralha de rochedos inacessíveis, que ofereciam uma defesa natural e uma resistência inexpugnável.

Na posição em que se achava, isto era necessário por causa das tribos selvagens, que, embora se retirassem sempre das vizinhanças dos lugares habitados pelos colonos, e se entranhassem pelas florestas, costumavam contudo fazer correrias e atacar os brancos à traição.

Em um circulo de uma légua da casa, não havia senão algumas cabanas em que moravam aventureiros S pobres, desejosos de fazer fortuna rápida, e que tinham-se animado a se estabelecer neste lugar, em parcerias de dez e vinte, para mais facilmente praticarem o contrabando do ouro e pedras preciosas, que iam vender na costa.

Estes, apesar das precauções que tomavam contra os ataques dos índios, fazendo paliçadas e reunindo-se uns aos outros para defesa comum, em ocasião de perigo vinham sempre abrigar-se na casa de D. Antônio de Mariz, a qual fazia as vezes de um castelo feudal na idade Média.

O fidalgo os recebia como um rico-homem que devia proteção e asilo aos seus vassalos; socorria-os em todas as suas necessidades, e era estimado e respeitado por todos que vinham, confiados na sua vizinhança, estabelecer-se por esses lugares.

Deste modo, em caso de ataque dos índios, os moradores da casa do Paquequer não podiam contar senão com os seus próprios recursos; e por isso D. Antônio, como homem prático e avisado que era, havia-se premunido para qualquer ocorrência.

Ele mantinha, como todos os capitães de descobertas daqueles tempos coloniais, uma banda de aventureiros que lhe serviam as suas explorações e correrias pelo interior; eram homens ousados, destemidos, reunindo ao mesmo tempo aos recursos do homem civilizado a astúcia e agilidade do índio de quem haviam aprendido; eram uma espécie de guerrilheiros, soldados e selvagens ao mesmo tempo.

D. Antônio de Mariz, que os conhecia, havia estabelecido entre eles uma disciplina militar rigorosa, mas justa; a sua lei era a vontade do chefe; o seu dever a obediência passiva, o seu direito uma parte igual na metade dos lucros. Nos casos extremos, a decisão era proferida por um conselho de quatro, presidido pelo chefe; e cumpria-se sem apelo, como sem demora e hesitação.

Pela força da necessidade, pois, o fidalgo se havia constituído senhor de baraço e cutelo, de alta e baixa justiça dentro de seus domínios; devemos porém declarar que rara vez se tornara precisa a aplicação dessa lei rigorosa; a severidade tinha apenas o efeito salutar de conservar a ordem, a disciplina e a harmonia.

Quando chegava a época da venda dos produtos, que era sempre anterior à saída da armada de Lisboa, metade da banda dos aventureiros ia à cidade do Rio de Janeiro, apurava o ganho, fazia a troca dos objetos necessários, e na volta prestava suas contas. Uma parte dos lucros pertencia ao fidalgo, como chefe; a outra era distribuída igualmente pelos quarenta aventureiros, que a recebiam em dinheiro ou em objetos de consumo.

Assim vivia, quase no meio do sertão, desconhecida e ignorada essa pequena comunhão de homens, governando-se com as suas leis, os seus usos e costumes; unidos entre si pela ambição da riqueza, e ligados ao seu chefe pelo respeito, pelo hábito da obediência e por essa superioridade moral que a inteligência e a coragem exercem sobre as massas.

Para D. Antônio e para seus companheiros a quem ele havia imposto sua fidelidade, esse torrão brasileiro, esse pedaço de sertão, não era senão um fragmento de Portugal livre, de sua pátria primitiva; ai só se reconhecia como rei ao duque de Bragança, legitimo herdeiro da coroa; e quando se corriam as cortinas do dossel da sala, as armas que se viam, eram as cinco quinas portuguesas, diante das quais todas as frontes inclinavam.

D. Antônio tinha cumprido o seu juramento de vassalo leal; e, com a consciência tranqüila por ter feito o seu dever, com a satisfação que dá ao homem o mando absoluto, ainda mesmo em um deserto, rodeado de seus companheiros que ele considerava amigos, vivia feliz no seio de sua pequena família.

Esta se compunha de quatro pessoas:

Sua mulher, D. Lauriana, dama paulista, imbuída de todos os prejuízos de fidalguia e de todas as abusões religiosas daquele tempo; no mais, um bom coração, um pouco egoísta, mas não tanto que não fosse capaz de um ato de dedicação.

Seu filho, D. Diogo de Mariz, que devia mais tarde prosseguir na carreira de seu pai, e lhe sucedeu em todas as honras e forais; ainda moço, na flor da idade, gastava o tempo em correrias e caçadas.

Sua filha, D. Cecília, que tinha dezoito anos, e que era a deusa desse pequeno mundo que ela iluminava com o seu sorriso, e alegrava com o seu gênio travesso e a sua mimosa feceirice.

D. Isabel, sua sobrinha, que os companheiros de D. Antônio, embora nada dissessem, suspeitavam ser o fruto dos amores do velho fidalgo por uma índia que havia cativado em uma das suas explorações.

Demorei-me em descrever a cena e falar de algumas das principais personagens deste drama porque assim era preciso para que bem se compreendam os acontecimentos que depois se passaram.

Deixarei porém que os outros perfis se desenhem por si mesmos.

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